A importância de ser preguiçoso
A mídia e as pessoas dão uma importância talvez grande demais ao fato de ser uma pessoa esforçada e dedicada. Contudo, mal sabem elas que, muito embora apenas pareça que estas pessoas são as que movem o mundo, sempre atrás de alguma delas há um gênio preguiçoso, que lentamente move as engrenagens da sociedade, às custas do qual ela evolui, e ele permanece no anonimato, como apenas um fiel, porém ignorado, escudeiro.
Vamos começar com um exemplo: a roda. A primeira invenção de todas. A maioria das pessoas pensaria que foram pessoas esforçadas e dedicadas que a desenvolveram, mas não; estas pessoas, na sociedade pré-histórica, dedicavam o seu dia à caça e à pesca. Contribuíam nos seus acampamentos nômades, exercitavam seus músculos carregando cargas pesadas nas costas e com as próprias pernas. Para eles, a existência de algo que facilitasse o seu serviço não era somente desnecessário; seria uma crueldade, uma afronta contra a sua magnânima presteza.
Deste modo, para quem sobrou a invenção da roda, aparato que nos acompanha não só até os dias de hoje, como com certeza vai superar a nossa civilização e povoar a mente de, quiçá, outros povos interplanetários, já que em sua importância já está devidamente incluída em cápsulas informativas que, neste momento, cruzam o espaço? O preguiçoso. Tão ignorado até então, nosso amigo preguiçoso, que sempre se recusou a carregar bois inteiros nas costas, a erguer troncos de árvores, a arrastar sacas, um dia decidiu pôr tudo, um em cima do outro, e empurrar.
E voilà! A primeira roda, nada além de uma carcaça de boi sobre dois troncos de árvores colocados horizontalmente sobre o chão. Foi o preguiçoso quem teve o primeiro lampejo de genialidade, porém lhe faltou a sagacidade de levá-lo à frente. O dedicado, prestimoso, roubou a ideia genial e, negando-lhe totalmente os direitos autorais, tomou a patente e desenvolveu o produto em mais detalhes. Logo a roda passou de um tronco de árvore para um disco de madeira; os eixos se tornaram mais finos, inseridos no centro destas, e logo acoplados a caixas de madeiras que, futuramente, tornar-se-iam as carroças. Ao dedicado, coube todo o crédito. E ao preguiçoso? O mais profundo anonimato.
Mas o preguiçoso é modesto; ele não se importa. De fato, foi até melhor; ele não só não teve trabalho em desenvolver a sua ideia, como ainda pôde desfrutar de uma versão dezenas de vezes melhorada. E nada mais de carregar bois nas costas.
Desnecessário dizer que, através dos séculos, o mesmo se apresentou nos barcos, bicicletas, carros, aviões; os moradores da Europa continental estariam satisfeitos em cruzar para a Grã-Bretanha somente em períodos de eras glaciais ou nadando, mas foi o preguiçoso que, imaginando que seria muito mais cômodo distribuir o peso de seu corpo sobre uma placa de madeira, em vez de ter de se dar ao pesaroso trabalho de traçar vigorosas braçadas, desenvolveu a canoa. E por que os braços, se poderia usar remos, muito maiores? E, aliás, por que se esforçar de todo, se Deus havia presenteado o mundo com incessantes rajadas de vento para as mais diversas direções?
Henry Ford teria desenvolvido cavalos mais rápidos, se não houvesse um preguiçoso ao seu lado que tivesse lhe dito: não seria muito mais cômodo se a carroça se movesse por si própria? Iria economizar todo o trabalho de botar o arreio, subir na boleia, instigar o cavalo e, não só isso, ainda ter de cuidar, alimentar e escovar o animal todos os dias. Santos Dumont iria desenvolver asas, se um preguiçoso não tivesse falado: você já viu o que aconteceu com Ícaro; por que não fazer um pássaro de ferro que voe por você?
Na realidade, a preguiça marca a sociedade e traça todo o seu desenvolvimento. Dizemos atualmente que o Japão é o país com o maior desenvolvimento tecnológico do mundo. Fato notável, sem dúvida relacionado ao número exorbitante de mentes fervilhantes, dedicadas e competentes, certo?
Errado. Novamente, e aqui acima de tudo, os preguiçosos são privados da fama e ignorados pelos seus compatriotas. Vamos começar do básico: o arroz japonês. O esperado seria que ele fosse tão temperado quanto o arroz chinês, aquele com queijo, ovo, presunto, ervilhas, cenouras, mas não; o arroz japonês é feito basicamente de arroz e água. O mínimo essencial. Obra de um preguiçoso que, em toda a sua ociosidade, remeteu ao mais simples, o mínimo necessário para que o arroz passasse do duro para o comestível.
O mesmo vale para o sushi; existe algo mais preguiçoso do que comer peixe cru? E, por fim, o cume da arte da preguiça: o ato de enrolar o arroz, o peixe e mais alguns elementos essenciais – como manga, pepino, kani, etc. – em alga, para não ser necessário sequer pegar cada item por vez, ou usar talheres. Tudo na culinária japonesa foi feito para poupar todos os esforços e a estafa de sujeitos preguiçosos, e isso é apenas uma pequena parte de tudo que esta sociedade nos proporciona. Os verdadeiros autores de todas estas maravilhas, contudo, ficaram esquecidos no tempo.
Agora que esta confusão toda já foi esclarecida, está na hora de darmos merecido crédito aos preguiçosos que todos temos dentro de nós. Vamos fazer um movimento para que todos percebam a importância destas personalidades em nossa sociedade.
Alguém está disposto a começar o movimento? Pois eu estou com preguiça…
Nota do autor, setembro de 2021: um ode aos preguiçosos! Eles são demais!
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais