A Mercearia da Kátia
“Blasfêmia!”, eu poderia ter dito quando ouvi a notícia – mas tal palavra não consta no meu humilde vocabulário e muito provavelmente também não consta no de ninguém, exceto por alguns advogados (mas não ser entendidos é o trabalho deles, logo estão certos em usar palavras complicadas) – de que a mercearia da Kátia havia sido vendida – sim, vendida! – para uma outra pessoa, que iria tomar conta dela para sempre agora.
Já sei o que você está pensando: “Popará aí! Quem é a Kátia?”. Muito bem, eu vou explicar. Há 25 anos, uma imigrante japonesa chamada Kátia nãoseidaquantas (nossa, em dezesseis anos de convívio nunca perguntei seu sobrenome!) abriu uma pequena e singela mercearia em uma pequena e singela rua de uma pequena e singela cidade chamada Taboão da Serra.
E, naquela pequena e singela rua só havia ela e o mato. E, é claro, a menos de um quarteirão – ou a três cipós, como se dizia na época – o prédio onde meus pais moravam. Desde sempre minha mãe freqüentou a pequena mercearia da Kátia. E lá sempre houve de tudo.
Sopa Missô, como toda boa loja de japonês, shoyu, sazon, ajinomoto, miojo, macarrão, bolachas, salgadinhos, pães, bolos, refrigerantes, sucos enlatados, docinhos, sabonetes, shampoos, toalhas, panos, guardanapos e todas aquelas coisas abarrotadas que se vêem em todas as lojas.
Não só isso, a mercearia da Kátia, durante todos estes anos, passou por inúmeras mudanças; veio e foi uma máquina daquelas onde você coloca a moeda para tentar – e dificilmente conseguir – pegar um bichinho de pelúcia. Há não sei quanto tempo foi incorporada uma televisão de cachorros, assim como uma televisão de humanos – que desde então fica pendurada na parede à esquerda, no alto, para que a Kátia assista, toda inclinada e, por mais inacreditável que seja, nunca com torcicolo (seria essa uma habilidade sobrenatural dos japoneses? Um dom especial? Como a menina do Exorcista, será que eles conseguem virar o pescoço em 360 graus também?). Lembro-me de que gastei exatamente nove reais da minha mesada de vinte para pegar um bichinho da máquina. Com quatro reais peguei o primeiro e, insatisfeito, pelejei por mais cinco reais sem conseguir pegar o segundo, que estava muito na ponta, como se fugisse da garra. Lembro também de minha mãe pedindo um bichinho daqueles para a Kátia, que lhe deu um cachorrinho pequenininho (o qual, curiosamente, tinha orelhas gigantescas que eu odiava, não sei porquê – algo que nem Freud explica –, as quais uma vez eu rasguei e, ironicamente, só então percebi como o bicho era meigo), e me lembro de mim mesmo nos meus um metro e trinta e cinco e sete anos de chatice pedindo, sem parar, como uma vitrola quebrada, por um bichinho para mim mesmo, o qual, coitada, ela deu como suborno para que eu calasse a boca.
Como a Kátia conseguiu me agüentar por todos estes anos? Não sei. Só sei que o tempo foi passando e passando. A loja cresceu, eu fiquei menos chato, não pedia mais por bichinhos (graças a Deus! Imagine-me, em meus dezesseis anos, pedindo por bichinhos de pelúcia!), mas a Kátia continuou igual. Sempre sentada em seu balcãozinho, a cabeça inclinada, olhando para a televisão, que não tinha controle remoto, sendo ligada e desligada por um cabo de vassoura – ela está a dois metros e meio de altura –, sempre no mesmo canal, não importa o quanto eu insistisse para ela tirar de Malhação e colocar em algo melhor. Passar pela Kátia e olhar para se certificar se ela estava lá, sentada, vendo tv, era um ritual sagrado, e eu sempre me entristecia quando ela não estava lá, o que era terrivelmente raro.
O tempo foi passando, mas eu ainda me lembro de mim mesmo assustando-a, tão absorta na novela que eu poderia levar a loja inteira embora que, contanto que a televisão ficasse, ela nem perceberia.
A mercearia cresceu para o lado, depois ganhou uma pequena loja de um real. Eu sempre falei para ela colocar uma banca de jornal, mas ela nunca me ouviu, até que outro dia eu cheguei lá – algo que eu faço praticamente todos os dias – e vi uma estantezinha com revistas de crochê. Era alguma coisa, pelo menos.
Há algum tempo eu adquiri o hábito de “roubar” chicletes; eu passo por lá, falo para ela “Kátia, to roubando um chiclete, põe na conta”, e ela punha, cobrando da minha mãe depois – quando eu a lembrava, porque normalmente ela não lembrava.
E todo mundo sempre conheceu a Kátia. Todo mundo sempre vai lá. Tem os vários “pinduras”, que ela anota em um caderno interminável, todo riscado, com dívidas de meio Taboão.
Minha infância perdida foi achada lá, enchendo o saco dela. E ela estava até me ensinando japonês! Eu já aprendi a falar “Oháiô”, “Konitiuá”, “Kumbauá”, “Kátiasan” e “Arigatô!”, e iria aprender mais.
Houve muitos encontros e desencontros em todos estes anos. Lembro-me do preto, o cachorro, que ficava à porta o dia todo, vigiando, esperando pela sua comidinha. E lembro-me do seu Armando, que depois de 35 anos no ramo de açougue – sim, há também um açougue na Kátia (a mercearia) – saiu há pouco tempo, para descansar. Lembro-me até de que eu sempre zoei do nome do ex-marido dela, que se chama Hipólito, mas eu chamei de Hipolíto (quando li não estava acentuado e não conhecia o homem), o hipopótamo de estimação dela. E qualquer coisa errada era sempre culpa dele.
A Kátia (a mercearia) não é muito grande, com seus cinco ou seis corredores cheios de produtos de supermercado, levando para um açougue, ao lado de uma parede, que leva para a segunda parte da loja, onde estão os estandes de um real e a parte de legumes, que, separada por uma parede, ladeia o pequeno balcão da Kátia (a verdadeira), sob a televisão ligada na Globo. Pode não ser a maior nem a melhor, mas sempre vai parecer um pequeno mundo para todos nós, e sempre vai morar no nosso coração.
PS: A Kátia (a mercearia) vai mudar de dono em setembro, e dizem que vão reformar tudo, enquanto a Kátia (a verdadeira) vai para a sua singela casinha na não mais singela rua onde está o meu prédio. Mas será que a Kátia vai continuar sendo a mesma?
Nota do autor, outubro de 2020: faz anos que não vou a Taboão da Serra, mas, até onde sei, a mercearia da Kátia permanece lá. Acho que com o mesmo nome. Mas, certamente, sem o mesmo glamour.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais