A Vitrola Interna Autotocante
Em homenagem a Tatiana Belinky, minha tia-avó, e Ricardo Gouveia, meu tio.
Se tem uma coisa de que me orgulho é do fato de ter crescido na casa de uma pessoa tão maravilhosa quanto Tatiana Belinky. Coisa que outros apenas sonham, sequer imaginam – ela já me contou de vezes em que crianças lhe perguntaram se poderiam tocá-la! –, para mim sempre foi uma coisa natural. Como ela mesma diz, desde pequeno eu gosto de pegar um livro, sentar no sofá ao seu lado e ficar falando sobre livros. É assim até hoje; ela com seus noventa e tantos anos, e eu com meus vinte e tanto. Só que, antigamente, ela lia para mim, e hoje, eu leio para ela.
Certo dia estava na sua casa, e ela me contou uma história deveras interessante sobre seu filho, Ricardo. Sentadinha em sua cadeira, a perfeita imagem de uma avó judaica, seus cabelos brancos penteados para trás, as pernas cruzadas, ela começou a falar quando Júlio, seu marido, havia comprado uma vitrola. Coisa não tão nova para a época, mas totalmente eletrizante para Ricardo, que estava no auge da curiosidade infantil. Conheceu a vitrola, aprendeu a mexer e logo ficou fissurado; acordava, colocava um disco e ficava sentado diante dela, vendo-o girar e girar, enquanto tocava.
Pouco depois, contudo, Júlio, que era médico, ficou preocupado com o impacto que aquilo poderia ter no pequeno Ricardo – estaria ele viciado em vitrola? Seria o primeiro a montar os Vitrólicos Anônimos? –, e ambos decidiram por bem que deveriam guardar aquilo. Ricardo não gostou, acordando no dia seguinte para encontrar o espaço vazio na sala, mas sua resposta foi imediata; sentou-se no chão, estendeu a palma, colocou o indicador da outra mão sobre ela, girando como se fosse o braço da vitrola com sua agulha, e começou a cantarolar a música, nota após nota, perfeitamente. Júlio e Tatiana ficaram bestificados; Ricardo tinha o que se chamava um Ouvido Absoluto; conseguia compreender todas as notas, guardá-las e, ainda por cima, reproduzi-las! Era uma Vitrola Interna Autotocante!
Obviamente, tal dom não podia ser desperdiçado e Ricardo foi para uma escola de música; ficou alguns meses, e o professor tinha certeza de que havia descoberto um novo Mozart. Tocava bem, sabia tudo, era perfeito! Logo poderia fazer seu próprio recital.
E o recital chegou; foram todos os aluninhos se apresentar, e Ricardo seria o último. Mas, quando chegou sua vez, quem disse que ele queria? Bom, a pedido dos pais, custou um pouco, mas lá ele foi. Sua execução foi perfeita. Terminou, levantou-se do piano, fez uma vênia para toda a plateia e se foi embora do palco. Depois disso, decidiu que nunca mais tocaria, e não havia quem o demovesse; o professor teve o coração partido.
Contudo, vez por outra, ela ainda o via às voltas com a sua Vitrola Interna Autotocante em funcionamento.
– É, coisa de criança – ela falou. – E, falando em coisas de crianças, sabia que eu consigo esticar minha perna segurando meu pé?
– Ah, essa eu quero ver! – falei.
E lá foi ela; segurou o pé esquerdo com a mão esquerda e o esticou; quando percebi, tinha mais elasticidade do que eu e não me contive em tirar uma foto.
Até hoje não sei quem me impressiona mais; meu tio-ouvido-biônico ou minha tia-avó-superelástica.
Nota do autor, setembro de 2021: Ah, Tati! Como sinto falta daqueles dias em que ficávamos conversando! Tati se foi em junho de 2013. Ricardo, por sua vez, foi-se entre junho e julho de 2018 (não tenho certeza da data, era finalzinho de junho, no máximo primeiro de julho). Neste meio tempo, ficamos apenas com as nossas próprias vitrolas internas auto-tocantes, cheias de saudade.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais