Andando
Eu gosto de andar. Não sei, talvez seja para compensar a falta de carro, talvez seja justamente porque eu já me acostumei a isso ou uma desculpa que o meu cérebro inventou por causa do fiasco que tem sido tirar a maldita carta de direção, mas eu gosto de andar. Toda vez que vou para Peruíbe, costumo sair para andar pela praia, do ponto onde moro até o porto e de volta – o que dá algo em torno de seis quilômetros. Não satisfeito, faço este percurso de manhã e de tarde e ainda vou, à noite, para o Pão de Maçã, pela cidade, o que dá três quilômetros na ida e volta. Do mesmo modo, quando fico em Sorocaba no fim de semana, gosto de ir até o Campolim (o nome do bairro que foi aplicado ao parque, sendo uma metonímia – é isso? O conteúdo pelo continente?), dar umas voltas por lá, morgar um pouquinho, ler o jornal como um velho sentado em um banco de praça e voltar para casa.
Porque andar é uma coisa que relaxa a gente. Não sei; o legal de andar é que basta apenas você colocar o seu corpo em movimento que ele faz o resto mecanicamente. A partir daí, sua mente pode ir para onde ela quiser. De fato, já tive dezenas de ideias para histórias enquanto estava andando, entre elas, a ideia para esta crônica.
Mas, obviamente, como tudo no mundo, existe uma técnica, uma arte para andar; não pode ser muito rápido, nem muito devagar; o pé não precisa bater pesado, pode ser mediano, mantendo um certo ritmo, os braços tranquilamente balançando ao lado. Não se pode ficar o tempo todo olhando para o chão, e nem o tempo todo olhando para os lados; é importante saber dividir o tempo entre olhar para o caminho à sua frente e/ou abaixo (o que, no caso de São Paulo, é essencial, por causa das calçadas bem mantidas) e tudo que passa ao seu lado. O que não se deve esquecer, entretanto, é sentir o caminho; sentir o chão sob seus pés, respirar profundamente o ar (preferencialmente menos poluído, ou seja, fique longe de avenidas), sentir os cheiros, ouvir todos os barulhos ao seu redor e, acima de tudo, sentir cada pedacinho de sua pele em contato com os arredores; a chuva, o sol, o vento, a neve (no Brasil é difícil). Vez por outra você tem a sorte de estar andando conforme passa um vento, e aquelas lindas flores de ipê caem ao seu redor. É raro, mas é ótimo. Há muito poucas coisas tão boas quanto isso.
Estou romântico hoje; andar me deixa romântico. Me deixa inspirado. Quando se anda do jeito certo, é como se todas as energias dos arredores viessem em sua direção.
E, do mesmo jeito que existe um modo certo de se caminhar, também não se pode caminhar do jeito errado; pensando em alguma coisa preocupante, ouvindo uma música, andando apressadamente para chegar logo a algum lugar, ou seja, usando as pernas meramente porque não há outro jeito, isso não vale. Não dá certo. Quando se caminha, tem de se prestar atenção nos arredores, no caminho, no caminhar; no máximo, deixar sua mente vaguear por um ou outro assunto, mas nunca nada que não seja agradável.
Quando se caminha, podem-se observar diversas coisas; domingo é dia de homens levarem seus carros e motos possantes e caríssimos para dar uma volta. Não é incomum verem-se velhos em seus porsches, em suas ferraris, lamborguinis (seja lá como se escreve isso, é coisa de classe alta demais para mim), acelerando ao máximo naquelas motos de trocentas cilindradas, rodando por aí com suas Harley Davidsons. E, o que é mais interessante, quando se vai a pé, é que a paisagem passa devagar, de modo que se pode ver a constância com a qual as pessoas com estes carros costumam pegar retornos para girar em círculos, quase como se estivessem andando apenas para se mostrar… E também é interessante notar o fato de que os donos destes conversíveis turbinados (ou não conversíveis turbinados, também está valendo) nunca têm ninguém no banco do passageiro…
Ainda vi, hoje mesmo, duas pessoas notáveis, para não se dizer coisa pior; uma delas era um homem, em um vestido de noiva, pedindo dinheiro para os passantes, no farol, dando um trote em si mesmo – e eu realmente acharia que era um trote de faculdade, não fosse ele um grandalhão de uns quarenta anos com um garoto de seis ao lado e um homem de uns cinqüenta, sessenta, por perto, tomando cerveja. O que raios era aquilo?
O outro era no shopping mesmo, um homem de calça e camiseta largas e rosas, usando anéis pretos, chapéu de mesma cor, combinando com os chinelos, e óculos de sol. No mínimo excêntrico.
Mas o que eu gosto mesmo é ficar olhando as pessoas ao meu redor, conforme ando, e tentar prestar atenção aos pedaços das conversas deles. É muito engraçado as coisas que se veem e ouvem enquanto se caminha por aí, prestando atenção unicamente nas pessoas. Como já disse outra vez, sou um observador de pessoas de carteirinha. Adoraria ser o Seth, do Cidade dos Anjos.
O problema de andar, na verdade, é quando se chega a algum lugar. Porque, para se andar com perfeição, não se pode ter destino algum; deve-se andar para onde quiser, para onde se sentir que se deve ir, sabendo apenas que, uma hora, tem de se voltar para casa. Contudo, a partir do momento em que se chega a algum lugar, pronto, você arruinou toda a arte de se andar, porque você tem planejado para onde voltar – e, com isso, vem toda aquela história de que a volta é sempre pior do que a ida. Sim, caso você não tenha reparado, a ida é sempre mais rápida e menos cansativa do que a volta. Repare; na volta, o caminho parece que não termina, a sua casa sempre parece mais longe, você está cansado, exausto, quer de qualquer modo chegar, mas não, o destino é cada vez mais e mais distante, como se ele andasse duas vezes mais rápido que você.
Por isso mesmo, como todas as artes, andar conta com a incerteza do destino. Senão, não é arte.
Nota do autor, setembro de 2021: continuo gostando muito de andar e, realmente, é excelente para ter ideias. Mas, infelizmente, não tenho mais tempo para isso…
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais