Férias?
Todo o ano, a minha família tem o mesmo costume: no final do ano, jogamos todas as tralhas no carro – e haja tralhas! – e vamos para Peruíbe, na nossa pequena odisseia que é a viagem de reveiom (seja lá como se escreve ou pronuncia isso). Tudo começa em São Paulo, quando você, a partir de uma semana antes da viagem, começa a: a) arrumar as malas que parecem nunca terminar de serem arrumadas, sempre surgindo uma coisa a mais para ser impiedosamente entochada dentro delas; b) checar todos os jornais todos os dias para ter uma ideia de como vai ser o trânsito; e, por fim, c) surtar conforme se aproxima o dia da viagem, ao perceber que vai haver trânsito em excesso e que não tem como escapar dele.
Então, chega sexta-feira – aliás, o êxodo começa na quarta, quase como um Oriente Médio, sendo o litoral Meca – e todo mundo liga seus carros e sai de casa para ir para a praia. Pronto; Imigrantes entupida, Anchieta entupida, BR 116 entupida, até mesmo a Castelo Branco está entupida, porque tem todo um êxodo rural em direção à praia e vice-versa (creio eu, porque não há outra explicação para o trânsito no sentido inverso, a não ser que todo mundo saia da capital e vá para o interior buscar a família para depois ir para a praia, o que duplica o trânsito). Isso sem mencionar que o meio do caminho – Bandeirantes, Marginal, etc e tal – também fica lotado, abarrotado.
Desta vez levamos só três horas e meia, porque saímos na quinta-feira de tarde. Imagine se fosse sexta-feira, sendo que, para variar, teve congestionamento e acidente e queda de barranco e trânsito e congestionamento…
Todo ano, milhões de pessoas ficam horas paradas no meio da estrada, enfrentando o sol, o calor, a irritação, os subempregados vendendo água por entre os carros e uns bandidos ainda assaltando os pobres coitados que estão inocentemente dentro dos seus automóveis barganhando com Deus para que a droga do trânsito ANDE, nem que UM METRO!
Depois disso, chegamos à cidade inundada.
O interessante é que Peruíbe fica depois do depois; quando se vai em direção a ela, as pessoas vão saindo da estrada, ficando mais da metade do fluxo em Santos – e consequentemente Guarujá e litoral norte – enquanto o resto segue e vai afluindo para as outras cidades costeiras, sobrando os pés rapados em Peruíbe e Pedro de Toledo.
O que não impede de modo algum que a cidade esteja cheia até a boca com turistas.
E isso leva à segunda epopeia, que é ir ao supermercado e abastecer a casa. Mas, claro, como não param de chegar pessoas e, obviamente, todos precisam comer, o supermercado nunca esvazia. Aquela história de que está vazio de madrugada é mentira – ele está cheio sempre. E não venham discutir comigo, porque a minha família tem o dom de ir ao supermercado seis vezes em dois dias. Não me pergunte como nem por quê.
As filas são quilométricas, chegando até a outra ponta do supermercado; os corredores estão cheios; as prateleiras, vazias, porque a reposição não dá conta; o preço, abusivamente alto; o calor infernal; a gritaria, a algazarra; a lentidão dos caixas,
Todo ano, milhões de pessoas ficam horas paradas no supermercado, enfrentando as filas, o calor, a irritação, os cretinos cortando lugar, os malditos enrolando para passar as coisas, todo mundo se empurrando querendo passar ao mesmo tempo, todos barganhando para Deus que a droga da fila ANDE, nem que MEIO METRO!
Depois disso, as pessoas guardam tudo em suas casas, pegam a geladeirinha, o frango, a farofa, as 240 latas de cerveja, os guarda-sóis, as cadeiras, os baldinhos ridículos e as bolas, os jogos de frescobol, as esteiras, as sungas, os maiôs, os biquínis (algumas nem isso levam), embolam tudo no porta-malas e se mandam para a praia, as famílias com as crianças cantando “Vamos a la playa, o-o-o-o-Ô!”, em uma alusão aos argentinos inconscientemente ensinada desde a tenra infância e que não deveria de modo algum ter sido passada em frente, os adolescentes com o som na maior altura tocando o último funk e os adultos reclamando tanto das crianças esganiçadas, quanto do trio elétrico em frente ou do trânsito absurdo ou do preço abusivo ou das filas…
Sem mencionar que, quando chegam na praia, nunca tem lugar para estacionar. NA praia porque nunca se fica à praia; a praia é todo um ecossistema, um ser vivo que tem a capacidade de englobar todo mundo e não largá-los até que já tenha absorvido tudo deles, ou seja, sua comida, seu dinheiro, seus filtros solares/bronzeadores, suas peles e sua paciência.
Porque a maioria das pessoas chega na praia de manhã, volta para casa na hora do almoço ou almoça por lá, depois retorna à areia e fica lá até às oito e meia da noite, quando escurece.
Neste meio tempo, jogam bola, correm até não aguentarem mais, comem até não aguentarem mais, entram na água até não aguentarem mais e, todo mundo desacostumado ao sol, no final do dia estão todos vermelhos em bolhas, satisfeitos e sorridentes, até a pele começar a arder. Aí eles passam a noite xingando os mosquitos e o maldito sol que queima demais, sendo que, no dia seguinte, toca todo mundo ficar na praia das oito às oito.
Eu tenho o costume de andar na praia, mas tenho hábitos de biólogo (definitivamente estou na profissão errada!), e, em vez de olhar os exemplares naturais de beleza (ou não) humana, fico olhando os bichinhos na água ou as criancinhas brincando ou os casais jogando frescobol. De qualquer forma, conforme ando, posso observar a quantidade exorbitante de sujeira no chão, a falta de espaço entre as pessoas que se digladiam para achar um lugar ao sol, todo mundo tentando exibir os corpos supostamente perfeitos que tentaram lutar no último mês para adquirir, passando a sucos ou milquicheiques milagrosos ou exercícios contraprodutivos e que ironicamente nada adiantaram, descontando tudo agora nos sorvetes ou cocos ou milhos verdes, os vendedores andando com roupas ou óculos por aí, pessoas comprando e não ficando com eles por mais do que um dia, para perdê-los e comprar outro no dia seguinte… Pessoas se sentam em suas cadeiras, ficam olhando o tempo passar e reclamam quando levam boladas dos mais ativos; outros tentam se exibir correndo pela areia, mas geralmente não aguentam muito; praticamente todos têm bolas para jogar; muitos têm raquetes de frescobol; as mulheres ficam à mostra, à procura de companheiros, mas os companheiros não vêm, e, descobri isso agora, as que ficam andando por aí dão notas para os passantes¹.
Todos os anos, milhões de pessoas rumam para a praia, à procura de diversão, mas, na verdade, à procura de respostas; tentam descansar e ao mesmo tempo se prometem que, no ano seguinte, tudo vai melhorar, que tudo será melhor, que conseguirão aquele emprego ou aquele dinheiro ou aquele corpo ou aquele amor… Mas, no final, tudo que elas fazem é se estressar, rezando para Deus para que não roubem o carro, ou não ocorram acidentes, ou haja espaço na praia, ou não haja filas, ou não haja trânsito, ou não saiam queimadas demais, ou encontrem o amor da vida delas acidentalmente na praia…
E, no final do dia, todos recolhem suas coisas (deixando o lixo na areia), jogam tudo no carro, rezando para chegar logo em casa e tirar a areia do corpo, porque ela coça.
Já no dia seguinte, estão todos lá de novo. E isso se repete até o fim da estação; e, de lá, até o ano que vem. Quando todos vêm do mesmo jeito…
Mas fazer o quê? Estas são as nossas férias. E, no fundo, no fundo… Até que vale a pena.
Nota do autor, setembro de 2021: acho que deu para perceber que eu nunca liguei muito para praia, né? Rsrsrsrs Eu basicamente resumi tudo o que me irritava quando eram as férias de verão, logicamente, reclamando de um ponto privilegiado, porque eu vivia na praia desde pequeno. Tem gente que nunca nem foi e para quem tudo aquilo era maravilhoso e certamente valia a pena!
Hoje em dia, temos uma preguiça muito grande de ir para o litoral, especialmente porque meu fim de semana só começa no sábado depois das 16h, e, quando você põe na ponta do lápis, o deslocamento não compensa, mas, quando vamos, fazemos questão de fazer toda essa farofada (quer dizer, mais ou menos; a gente sabe que falta melanina o suficiente para passar tanto tempo na areia! Então, ficamos pouco tempo). Ó, ironia!
¹ (Nota de 2021) Pois é, eu me lembro que me deram uma nota, não sei se era 7 ou 8, possivelmente com a intenção de que eu perguntasse ou reclamasse por que não era 10. Considerando como eu era magrelo, tive sorte que não foi um 4!
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais