Inspirações
A inspiração de um autor é uma coisa muito estranha (como se o autor em si não fosse uma coisa estranha; afinal, passar grande parte da sua vida confinado, escrevendo, não é uma atividade muito normal, quando se pode muito bem passar horas mais divertidas com os amigos, familiares, cônjuges ou até mesmo olhando o tempo passar de carona clandestina nos ônibus pela cidade). Ela vem e vai, como explosões. Parece um pouco a menstruação, se querem saber. Vem uma vez por mês, explode como uma bomba, e depois para.
Tudo que muda são os períodos, apenas isso. Para a inspiração, pode ocorrer de ela ficar sem vir por dias, semanas, meses ou até mesmo anos; e pode vir com tudo o que ficou devendo depois, trazendo milhares de ideias, deixando o autor louco por não conseguir escrever tudo de uma vez. Mas depois ela some. A vela vai se apagando, se apagando, brilha como nunca no final, mas irremediavelmente morre. Morre para nascer mais uma vez depois, acesa, quem sabe, por uma mão divina, uma mão humana, não sei.
Não sei, porque as ideias simplesmente surgem do chão, como gnomos. Aparecem do nada. Aquela ideia incrível, inimaginável, capaz de mudar o mundo, simplesmente vem na sua cabeça; ZAP!, você sente aquele impulso inicial da ideia entrando na sua mente, treme todo de prazer, do choque; não há nada melhor do que uma inspiração, é uma coisa incrível. Você ouve o clique na sua mente, ela se ilumina inteira, as engrenagens começam a rodar; seu corpo fica leve, leve como nunca, você ignora todo o mundo à sua volta, e corre, corre como um louco (o louco que verdadeiramente é, o Id finalmente solto pelos campos da liberdade literária) para transcrever a sua ideia, ou ela corre o risco de sumir; escreve em qualquer coisa que vê pela frente, a parede, o chão, o braço, a camisa, a calça, cueca, a nota de um real, o passe do ônibus, a porta do banheiro, a tábua (que você depois placidamente leva sob o braço, como se não fosse nada de anormal, enquanto o mundo inteiro encara você como um louco; bem-vindo, você é um escritor).
As melhores ideias vêm assim. Você está andando na rua e PÃ!, descobriu a teoria da relatividade. Está dentro do ônibus, esmagado entre dois caras de uns dois metros, jogadores de basquete, com aquele cheiro extremamente agradável pós-jogo, os braços segurando no apoio de cima, os tererês dos pêlos da floresta sub-braçal, e ZAP!, vêm aquela receita da panqueca perfeita (que não deixa de ser tão importante quanto a teoria da relatividade, note!).
É sempre assim. E, uma vez que você teve uma inspiração, é como um vício: você simplesmente não consegue ficar sem. É como um namorado (caso seja você uma mulher), com quem você saiu uma vez: você fica do lado do telefone, no dia seguinte, esperando que ele ligue, mas ele não liga. Vem aquela aflição, aquela ansiedade, será que ele não gostou de mim?, será que ele nunca mais vai me ligar?, o que, meu Deus, o que que eu fiz de errado, caramba?
E cada dia que você passa sem ela, você fica mais louco, ainda mais bitolado do que o verdadeiro autor já é. Vem então aquela depressão, aquela crise, a necessidade de a ter em sua mente, inebriar sua alma. Você precisa dela, nem que seja por um segundo, só mais uma vez, só mais um pouco. É a crise de abstinência. Você fica louco, começa a ver elefantes rosas por aí, vacas verdes com listras roxas; o mundo perde a graça, simplesmente perde a graça. Não tem mais nenhum colorido (normal, porque a psicodelidade anexa à loucura continua) na vida, não vale mais a pena viver.
Como um amigo meu que certa vez conheci. Estava andando pela rua, sob a chuva, triste como nunca, uma sombra do que uma vez fora; não conseguia mais viver. A Inspiração (perceba que inspiração não é nada mais que uma –piração que vem para dentro – ins-) o havia abandonado fazia seis meses. Ele havia ido de clínica em clínica de recuperação, grupos dos D.A. (Desinspirados Anônimos), grupos dos A.F. (Autores Falidos) e até mesmo dos A.D.N.R.P.S. (Autores Desesperados Não Reconhecidos Pela Sociedade – eu faço parte deste), mas nada de ela voltar. Havia sido um ponto final. Uma separação. Um divórcio. Porque a inspiração é má, muito má; quando ela quer se separar de você, não quer mais você, simplesmente não liga: faz as malas, pega suas filhinhas e some como um tufão, deixando você descabelado, chorando na sarjeta, literalmente sem eira nem beira (e o advogado que cuida da papelada nunca é gentil, nunca mesmo).
E lá estava o meu companheiro, sofrendo como nunca. Era tão profundo o rasgo em sua alma, que ele se jogou de uma ponte, em um momento de desespero, depois de ter bebido e cantado; seu nome era João Gostoso, um carregador de feira, e, quem diria! a sua inspiração o havia trocado, e justo por quem? Um cara aí chamado Manuel Bandeira. Ele simplesmente não podia se conformar.
Tenho certeza de que os dois estão se batendo lá no céu. Ou, quem sabe, no inferno, porque o destino dos autores não deve ser outro. Afinal, eles só atazanam as pessoas, as editoras, as agências de publicidade… E a inspiração! Mas a verdade é que, sem a inspiração, não seriamos ninguém. E sem nós, a inspiração não seria nada.

O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais