Manifestações Infantis
Estavam os dois sentados no banco de trás do carro, parados no trânsito, ouvindo o noticiário no rádio, enquanto a mãe bufava, no banco do motorista, por não conseguir sair do lugar já havia 10 minutos.
– “A manifestação está agora no centro da cidade, e a polícia está tentando controlá-la usando gás lacrimogênio, bombas de efeito moral e gás de pimenta”.
– Puxa vida! Gás lacrimogênio!
– Mano, o que é gás lacrimogênico?
– É gás la-cri-mo-gê-ni-o – respondeu o irmão mais velho, com ares de sabido. – E como que você não sabe o que é?
– Ah, eu não sei! Diz pra mim, vai!
– Bom, lacrimogênio é um gás que… Ah, faz as pessoas se tornarem gênios do crime!
– Ah, é?
– Isso. Lá, crime, gênio. Taí.
– É por isso que tem gente assaltando os bancos no meio das manifestações?
– Isso!
– E bomba de efeito mortal?
– É moral, maninho, não mortal! Eles jogam as bombas, e as pessoas ficam deprimidas. Aí, elas não querem mais protestar!
– É pra isso que elas servem?
– É lógico! Quer coisa mais fácil do que jogar uma bomba que faz as pessoas desistirem de fazer o que estão fazendo?
– Puxa, mas que coisa avançada! E o gás de pimenta?
– Ué… É um gás feito da pimenta. Faz o corpo arder e irrita os olhos e faz todo mundo sair correndo para comprar água.
– E aí, no meio da manifestação, aqueles vendedores ambulantes ficam milionários, né?
– Exatamente! Faz tudo parte da estratégia, daquelas coisas de marquetim para vender mais.
– E como fazem esse gás?
– Ah… Parece que… É um gás importado do México. Eles dão comida apimentada pras vacas mexicanas e ficam juntando o pum delas em potes, para depois fazer as bombas!
– Nossa! Como você sabe das coisas, ehm, mano!
– Pois é…
No rádio, o jornalista prosseguia:
– “Agora, a polícia está contendo a manifestação usando tiros de festim e balas de borracha”.
– E tiros de festim, mano?
– Ué… São tiros de festa, sabe? Aqueles tiros que as pessoas dão no carnaval para soltar serpentina e confete!
– Mas, no que isso vai ajudar na manifestação?
– Ah, acho que eles querem deixar tudo mais festivo, para ver se o pessoal para de protestar.
– Mas, primeiro eles jogam uma bomba que deixa todo mundo depressivo e depois, dão uma festa? Que coisa confusa!
– Talvez eles queiram vencer pela confusão, mesmo…
– E as balas de borracha?
– Ué, eles dão balas para enganar as pessoas. Aí, elas vão morder, e acham que é bala de verdade, mas, no final, é tudo falso, de borracha. E todo mundo fica chateado!
– Puxa vida! Que sacanagem!
– Pois é…
Enquanto isso, a mãe dos garotos se divertia no banco da frente. Como era impressionante a ingenuidade das crianças! Como conseguiam criar tantas coisas mirabolantes para transformar algo tão horrível em uma grande festa?
Quando finalmente chegaram à casa, uma notícia emergencial mostrou cenas da manifestação sendo reprimida com as tais bombas e tiros.
– Mano! Eu não tô vendo nem os gênios do crime, nem o pessoal deprimido, nem as serpentinas ou confetes, nem eles distribuindo as balas falsas!
– Devem ter acabado – respondeu o mais velho, com ar de sabe-tudo, e pegou o controle para mudar de canal. – Eita manifestação sem graça. Esses adultos não sabem mesmo se divertir…
Nota do autor, outubro de 2021: esta crônica foi escrita em meio a manifestações em São Paulo. Qual o motivo? Não me lembro mais. Tivemos tantas e tantas manifestações depois disso… Pena que nenhuma delas foi uma manifestação infantil de verdade. Ah, essa teria sido boa!
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais