O Entregador de Folhetos do Dentista
Esta é uma crônica em homenagem a um velho (velho de idade, porque eu só conheço ele há alguns meses) amigo meu, o seu João (se é que esse é o nome dele mesmo, porque eu não tenho certeza). Como eu o conheci? A história é a seguinte.
Tudo começou quando meu pai e a minha mãe resolveram…
Não, vamos pular uns dezesseis anos nessa história aí certo? Bom, meu pai havia comprado um restaurante (quase falido, note), e, na esperança de fazer ele sair da cova, eu passei a entregar folhetos para os transeuntes, chamando-os para comer lá. Só que aquilo me deixou decepcionado, e eu vi como era dura a vida dos nobres trabalhadores subempregados que fazem isso por um salário mínimo, porque eu entregava os papéis, e logo vinham as opções:
a) a pessoa pegava e cumprimentava, o que era raro. Às vezes até ouvia o que eu dizia, falava que voltava depois, e quase nunca entrava mesmo;
b) a pessoa pegava e ia embora;
c) a pessoa pegava e jogava no chão;
d) a pessoa dizia “hoje não” e nem pegava, o que era o mais frequente;
e) o mal educado continuava reto e me ignorava, como se eu fosse um mosquito irritante, nem olhando para a minha cara, o que doía mais e era o segundo mais frequente.
Desde então, criei um certo dó pelos caras que passam o dia entregando estes folhetos, porque sei o quanto é chato e irritante quando uma pessoa segue as opções c, d ou e. Por isso mesmo, faço sempre a opção a.
E foi assim que conheci o seu João, que está todo santo dia plantado em frente ao McDonald’s, entregando papéis de um dentista. Como esta é a rota padrão que eu tomo com a minha cachorrinha durante os passeios, eu sempre pego os papéis que me entregam (inclusive quando estou no carro), o que formaria, no final do dia, uma pilha de três metros.
Em homenagem aos meus amigos trabalhadores, eu sempre pego e sorrio, e o seu João é sempre o mais gentil; aperta a minha mão, cumprimenta a Jeannie, sorri. Eu o encontrei hoje, não faz nem dez minutos (foi o que me deu a ideia da crônica) na minha rua, e ele me cumprimentou, andando com uma sacola cheia de papéis. Como era uma hora da tarde, creio que havia saído do Cantinho do Meio-Dia, um restaurante em frente à minha casa que serve comida por quilo para trabalhadores (não posso opinar se é bom ou ruim porque eu nunca comi lá, mas o lugar persiste há anos já).
Ele ia mais uma vez batalhar pelo seu pão, ficar o dia inteiro em pé no seu posto, entregando papéis para milhares de mal-educados, mas, mesmo assim, ia com um sorriso estampado no rosto, um bom-humor sem igual. Ele até me disse uma vez que gosta muito de cachorros, que sua felicidade é chegar em casa à noite e dar comida para eles.
Será que ele tem alguma família, filhos para quem voltar, esposa com a janta na mesa? Onde será a sua casa? Será que ele se importaria de uma visita?
Posso não saber nada sobre ele, mas tenho certeza de que ele me ensinou muita coisa, porque, muito embora o seu seja um subemprego, que não deve pagar nem salário mínimo, não deve ter direito a convênio nem seguro nem nada, ele está lá, sempre com um sorriso, nunca desanimado, nunca abatido. Quando não o vejo, sinto até falta.
Por isso, presto as minhas mais sinceras homenagens a esses homens – e mulheres – que, em um mundo de desempregados, de violência, de corrupção, apesar de todos os obstáculos, encaram a vida com felicidade, querendo apenas voltar para casa para alimentar e brincar com seus cachorros.
Grande São João!
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais