O homem que (não) sabia o que queria
Estava andando pelas ruas da cidade quando encontrei um homem bastante peculiar. Estava tentando grafitar algo em um muro, mas ele era definitivamente muito ruim. Não que ele não estivesse tentando – ele realmente estava e parecia mesmo que tinha até algum conhecimento de artes, mas simplesmente não estava dando certo. Talvez faltasse um pouco de experiência, e eu me perguntei se não era a primeira vez que ele fazia isso na vida. É, pela forma como segurava as latas de spray, deveria ser a primeira vez, mesmo.
Assim, não consegui me conter e fui perguntar ao homem o que, exatamente, ele estava grafitando.
– Estou – respondeu ele – exercendo a minha liberdade criativa.
E deveria estar mesmo, pois estava usando um sobretudo marrom aberto, um chapéu Panamá, e, por baixo, camisa havaiana, bermuda e chinelos. Sua barba era bastante crescida, já com alguns fios grisalhos, e o seu rosto parecia o de um homem de quase cinquenta anos.
Depois do seu comentário, eu teria ido embora, para não incomodá-lo no seu exercício libertário, mas ele prosseguiu, segurando-me com sua fala, enquanto fazia um traço indeterminado na sua figura abstrata.
– Quer saber por que estou exercendo a minha liberdade criativa?
Dei de ombros; por que não?
– Porque não tem rotina aqui.
Isso lá era verdade, mas não me deixou intrigado a ponto de continuar lá, e já estava para me despedir, quando ele disse:
– Sabe, eu sou formado em seis faculdades diferentes.
Ok, deveria ser um doutor surtado. Não era incomum encontrar por aí, nos dias de hoje, com a recessão e tudo mais.
– Quer saber por que fiz seis faculdades?
Bem, não tinha escapatória mesmo… Ele iria me segurar até contar toda a história, então…
– Por quê?
– Sabe, tudo começou com os meus pais… Eles me disseram a vida inteira que eu deveria ser médico. Minha escola inteira foi dedicada a me preparar para a medicina, sabe? E eu sempre achei a escola muito chata, muito repetitiva, todo dia a mesma coisa. Por mais que aprendêssemos novas informações todos os dias, na verdade, algumas coisas se repetiam do fundamental ao ensino médio, e pior, outras tinham sido ensinadas de forma errada, para que entendêssemos quando éramos pequenos. Mas, tudo bem, eu tinha um objetivo maior em mente; e entrei em medicina.
“Mas… A faculdade era a mesma coisa, só que de nível superior. Era a mesma rotina chata, e eu realmente esperava que tudo fosse melhorar quando eu me formasse, só que… Você não imagina, médico tem a vida mais chata e rotineira do mundo! Todo dia, pacientes e mais pacientes, sempre com as mesmas queixas, sempre as mesmas coisas. Para cirurgiões, também, sempre as mesmas cirurgias, os mesmos pacientes… Tudo muito rotineiro, muito chato, muito engessado, cheio dos protocolos!”.
“Aí, eu larguei tudo e resolvi fazer direito. Esperava que, com as leis, com os rebuliços, os advogados seriam diferentes. Mas, também, era sempre a mesma coisa… Casos de divórcios, empresas indo à falência, etc, etc. Desisti de direito e fui para a engenharia. Achei que me daria bem, criando pontes, coisas assim, mas sabe… Era tudo cálculo, prazo, cálculo, prazo, projetos emperrados pela burocracia, e sempre as mesmas coisas para projetar… Não durei mais do que um ano no mercado de trabalho e decidi que iria fazer publicidade. Aí, sim, usaria a minha capacidade criativa! Aí, sim, o dia a dia não seria rotineiro”.
“Mas era sempre a mesma coisa. Chegar, bater cartão na firma, criar um esquema publicitário dentro do prazo, apresentar, agradar o chefe… Mesmo montando a minha firma de publicidade, eu vi que eu teria que ficar chapinhando, começando do zero, e caçar fregueses é uma coisa muito repetitiva! Foi um ano e meio lutando, e eu desisti novamente”.
“Decidi mudar de rumo. Virei biólogo – iria fazer pesquisas marinhas na Antártida. Mas, ó! Era sempre a mesma coisa. Prepara projeto, envia projeto, aguarda resposta, corrige projeto, nova resposta, aguarda financiamento, realiza pesquisa, analisa dados, escreve artigo, envia artigo, corrige artigo, envia de novo, recusam artigo, manda pra outro… Aquela rotina de pesquisador começou a me deixar louco, e só de pensar em dar aulas de biologia, ensinando a mesma coisa nove vezes na semana! Argh! Um horror!”.
“Então eu decidi ser aviador. Ver os céus, coisa e tal, mas, mal comecei o curso, já percebi que não daria certo. Eu me sentia como um motorista de ônibus, só que com asas”.
“Resolvi ser filósofo. Fiz a faculdade, tornei-me um grande filósofo, mas… Ficar filosofando é uma coisa rotineira e chata, se quer saber. Temos de pensar para tudo! Se quero comer, por que quero comer, o que me faz querer comer… Muito repetitivo. Desisti de filosofar e fiz um ano sabático pelas ruas, conversando com as pessoas, vendo as perspectivas que elas tinham da vida… E sabe o que eu descobri?”.
– Não – respondi.
– Mais repetecos! As pessoas sempre querem a mesma coisa rotineira de sempre, e as suas perspectivas são tão redundantes! Quando, quando! – gritou ele, pegando-me pelo colarinho. – Quando vão querer finalmente se libertar destas rotinas sufocantes? E foi aí, foi aí que eu percebi. É isso! É isso que eu vou fazer da vida! Vou grafitar, o que eu quiser, onde eu quiser! Nenhum dia será igual, nunca haverá uma rotina! Onde vou grafitar amanhã? Não sei; pode ser o muro, pode ser o chão, pode ser a Catedral da Sé! Vou morar na rua, não vou nem saber se tenho comida para o dia seguinte! Isto, sim, é liberdade! Isto, sim, é criatividade!
E começou a grafitar loucamente pelas paredes.
Eu fiquei realmente consternado com o homem, olhei para os lados, vendo se não tinha ninguém, e, de repente, três homens fortes surgiram e o pegaram pelos braços e pernas.
– Vamos, seu Dali, vamos. Está tudo bem com o senhor.
– Não! Vocês vão me pôr naquela rotina maçante de novo! Não!!!
Levaram o homem para uma ambulância, aplicaram alguma medicação, e ele logo relaxou. Eu me aproximei e fui perguntar ao médico o que estava acontecendo.
– Ele é o seu Dali. Ele… É um esquizofrênico. Mora no hospício aqui perto. De vez em quando ele foge e começa a pichar os muros, dizendo que quer sair da rotina… Ele não te machucou, machucou?
– Não, não, imagine. Só estava conversando.
– É, ele não é agressivo. Quer dizer, só tem um grande mau gosto para pintura, mas…
Ele riu.
– Ele fez o seu discurso sobre as seis faculdades?
– Fez, sim.
– É… Ninguém sabe se é verdade. Ele não tem família. Mas, tudo bem, vamos levá-lo agora.
– Se quer saber – eu falei. – Acho que o seu Dali é o mais lúcido de todos nós. Até logo.
E, com as mãos nos bolsos, caminhei para longe, antes que resolvessem me internar também.
A cem metros do muro, eu olhei novamente para aquela série de cores disformes, que não significavam nada, e fiquei chocado: ele havia criado uma pintura impressionista, a estilo de Monet, de uma ampulheta e um esqueleto dando gargalhadas.
Voltei para o muro e peguei uma das latas de spray. Acertei o pontinho que estava faltando de cor, e a figura ficou perfeita. Depois disso, fui embora.
Definitivamente, era o mais lúcido de todos nós.
Nota do autor, outubro de 2021: quem foi que nunca achou tudo rotineiro demais? Escrevi esta crônica em um momento de crise existencial, entre a faculdade e a residência, quando trabalhava como clínico na UBS e tudo era muito, muito repetitivo. Depois de assistir ao Homem de Ferro, inclusive, quis me tornar um engenheiro como o Tony Stark, mas, quais as chances de criar uma armadura como a do Homem de Ferro?
De qualquer forma, 8 anos depois, tenho uma rotina bem pouco rotineira, fazendo de tudo um pouco. Graças a Deus!
Mas ainda não cheguei ao ponto de sair grafitando de sobretudo e chapéu por aí.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais