O misterioso irmão do homem bicentenário
Eu costumo ir à Hebraica (ou seria ao Hebraica? Já faz quinze anos que freqüento e ainda não sei o sexo do clube) quase toda terça, quinta e sexta. Às vezes no fim-de-semana, quando não viajo ou não tenho provas. Mesmo assim, toda vez que vou em um dia de semana, sigo a mesma rotina; acordo às 6:30h, tomo café, arrumo-me, desço, pego o jornal e sigo com ele e minha mãe para o seu carro, que nos leva para o clube, a 12 quilômetros da nossa casa.
Se há trânsito, abro o jornal e começo a lê-lo, sempre na mesma ordem: Caderno 2, Esportes, Primeiro Caderno, Economia e Cidades. Senão, simplesmente sigo com ele sob o braço para o clube.
Ao chegar, sento-me no sofá do saguão de entrada e leio o jornal na ordem habitual. Às vezes parto antes para a piscina, às vezes depois, às vezes sequer vou. Contudo, há sempre uma mesma figura à minha frente. Se chego um pouco mais cedo, posso vê-lo saindo de seu gol branco e lentamente caminhando para o clube, para se sentar no sofá imediatamente oposto ao meu, cruzar as pernas, depositar as mãos, uma sobre a outra, no colo, suspirar e fitar o nada.
Em meio à sua contemplação, o homem muda o foco para mim, meu jornal e o teto, antes de se retirar para o banheiro. Pouco depois, volta em seu lento trote e se senta do mesmo modo, fitando as mesmas coisas, antes de voltar ao banheiro.
Encaro-o nos momentos de contemplação ao teto; seu grande nariz e orelhas de abano, olhos fundos, cabelo ralo, pele rugosa, coluna arquejada, braços e pernas longos e finos. O máximo que consigo descobrir sobre ele é a sua idade: provavelmente entre 60 e 80 anos, não mais, não menos.
Mas, quem seria ele? E por que fazia as mesmas coisas todos os dias? Por que, sempre no mesmo horários, fita o nada e alivia a bexiga (se não outro órgão)? Seria casado? Viúvo, divorciado? Teria filhos ou netos? Irmãos? Parentes ainda vivos? Sobrinhos? E o que fazia depois de se levantar, lá pelas 8:40h, e antes das 10:30h, quando posso vê-lo partir, ao mesmo tempo que eu, sozinho em seu gol branco?
Mais do que isso, aquele velho homem mostra a mim o que nem todos os velhos vêem: que, apesar de tudo que se passou, em todos estes anos, ainda se pode levar a vida adiante, sair de casa, andar de carro e ir para o clube. Mesmo que seja para fitar o nada e intrigar um garoto curioso.
Sinto sua falta quando não vem, o que é raro, mas será que ele dá por minha falta quando eu não venho?
Terá ele amigos? Sua casa própria? Será o carro seu? Como ganha dinheiro? Qual foi seu passado? O que será que viu, ou deixou de ver?
Ele não deixa de me surpreender, quando o vejo, dia após dia, faça chuva ou sol, neve ou granizo, lava ou canivete, sentado naquele sofá. Fiquei feliz hoje ao vê-lo, antes de traçar esta crônica, lendo um livro. O que estaria lendo? E por que o estaria fazendo?
Mais que isso, mostrou-me que também um velho pode mudar a sua rotina. Mas algo me intriga; Será que, quando eu alcançar a sua idade atual, ele ainda estará aqui para me ver (ou eu vê-lo)? Quantos anos terá ele então? 200?
Seria ele, então, o irmão do homem bicentenário?
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais