O pastor de ideias
Estava eu dormindo. Pelo menos é isso que eu acho que estava fazendo, mas não tenho certeza; estava mais uma vez naquele estranho estado no qual se fica quando se tenta dormir, mas não se consegue; muitas vezes se está dormindo quando se pensa não estar, e só se sabe que você realmente cochilou alguns minutos quando olha para o relógio e acha impossível o tempo ter passado tão rápido.
E, pensando justamente nisso, enquanto eu cruzava esta barreira entre o consciente e o inconsciente, uma espécie de muro, sobre o qual, quando se fica, pode-se desfrutar de tudo de ambos os lados, ainda que se perca um pouco do controle sobre o que se pensa, de repente me veio à cabeça se o tempo não passava mais rápido quando dormíamos porque estávamos completamente parados, mas a teoria relativa de Einstein foi totalmente rechaçada quando médicos vieram e me informaram que: um, só porque você está dormindo, não significa que o universo parou; e dois, você deixa de se tornar consciente, logo o tempo simplesmente voa.
Eu contra-argumentei, então, que seria possível o universo parar e o tempo correr mais rápido, quando eu durmo, se tudo não passasse do fruto de um longo sonho meu. Assim, quando eu dormisse seria como se eu me desligasse do sonho, logo o universo onírico inteiro pararia e o tempo literalmente voaria. Além disso, ainda argumentei que, se o tempo voa quando não se está consciente e os animais não são conscientes de sua própria vida e consequente passagem de tempo, eles nem se tocam do que está se passando à sua volta – e sequer se isso se passou mesmo.
E a discussão teria ido a fundo mesmo, porque os médicos pareciam muito dispostos a discutir com a lógica maluca do entressonho, quando eu capotei como um ovo gigante do lado inconsciente da barreira. Creio que entendi como Humpty Dumpty se sentia, e, de fato, entendi justamente o que ele queria dizer; ele oscilava entre o real e o irreal em uma barreira entre o consciente e o inconsciente, de modo que podia desfrutar de todo o conhecimento da mente de Lewis Carrol, indo e voltando a seu bel-prazer. Como as coisas criam lógica, por mais estranha que ela seja, quando se está sonhando!
De fato, até as coisas mais absurdas têm lógica quando se está dormindo, até mesmo o fato de uma vaca poder voar (o que justamente passou por mim, mas eu não liguei muito, justamente porque, no sonho, tudo é normal).
De um modo ou de outro, com estes pensamentos de lógica surrealista (que paradoxo!) na minha cabeça, prossegui por uma estrada de tijolos róseas – e não amarelos, por favor – ao lado de campos tutti colori – sim, eles eram feitos de macarrão – pintados a óleo – e alho. O céu era uma pintura de aquarela que misturava o roxo, o laranja, o amarelo e o azul, tudo de uma só vez, e eu poderia jurar que o pintor era um rípi psicodélico fumando todas.
Por fim, ao cruzar um campo onde hipopótamos e pinguins falantes dividiam um pasto, cegonhas nadavam calmamente nas águas e arraias cruzavam os céus e mergulhavam para tentar pegar a presa penosa, encontrei um velho homem, corcunda já, com um cajado de teixo – por incrível que pareça, no meu sonho eu não só sabia o que era um teixo, como sabia diferenciar sua madeira das outras! – e uma roupa bem velha e rasgada de pastor sobre seu corpo magro e alto. Um chapéu de palha cobria-lhe a cabeça careca, mas deixava à mostra os olhos velhos e cinzentos, o nariz aquilino e o rasgo que era a boca, segurando um cachimbo de barro.
Perguntei-lhe coisas em uma língua amalucada, que de algum modo possuía tradução simultânea para o português, de modo que, apesar de eu entender a língua maluca, eu ainda podia ler as palavras na minha língua materna embaixo.
– O que fazes aqui, ó nobre pastor?
– Cuido de ideias – respondeu-me, com sua velha voz roufenha.
– Ideias?
– Sim, ideias. Não fosse eu, as ideias ficariam perdidas por aí, e muito raramente seriam alimentadas, de modo que provavelmente morreriam de fome ou abatidas por uma ideia mais forte e mais conservadora. Normalmente as ideias revolucionárias não sobrevivem muito sozinhas.
– Como é isso?
– Olha, vês aquele porco ali, com jatos-propulsores do lado? Isso é uma ideia que, apesar de revolucionária, não daria certo. Por isso mesmo, o porco está em um lugar de fácil abatimento. Logo, logo, chegará alguém para abatê-lo.
– Mas que demônios de pastor inútil és, então?
– Posso terminar? Obrigado. Agora, se olhares ali, verás boas ideias, todas elas pastando juntas. É delas que eu cuido. As ideias mais fortes podem se cuidar por si mesmas; podes vê-las espalhadas por aí. Normalmente são árvores de raízes muito, muito profundas, que dão frutos constantemente. Essas podem se manter vivas por si só. Normalmente é delas que as novas ideias irão se aproveitar.
– Sim, entendendo.
– Agora, as ideias revolucionárias são, de fato, as mais complicadas de se cuidar. Elas são travessas e não raro me enganam; meus olhos já não estão tão bons como antes. A verdade é que, muitas vezes, as ideias revolucionárias escapam de mim e cruzam aquele enorme muro de onde viestes; aí, elas viram ações reais, e isso é perigoso, porque eu não cuidei muito bem delas. Não lhes ensinei tudo que precisam saber sobre o mundo; ainda não são ideias revolucionárias maduras, não são boas ideias e não são ideologias. Muitas vezes elas morrem lá fora, totalmente destruídas pela triste realidade, pois sua luz se ofusca na escuridão, após iluminá-la por um tempo, ainda mais por não conseguir iluminar os poços escuros que são as ideias conservadoras, como se fossem buracos negros, sugando toda a luz; ou então voltam para se refugiar aqui, muito fracas. Às vezes consigo salvá-las e, depois de um bom tempo amadurecendo, se recuperando, elas podem cruzar o muro pela porta de verdade. No entanto, há também aquelas que, às vezes, dão certo. Aí elas se reproduzem, e muitos pastores de ideias, como eu, passam a cuidar delas por aí.
– Isso é bastante interessante, realmente interessante. Os pastores de ideias se comunicam?
– Às vezes sim, quando temos uma ligação muito forte.
– Sim, sim. E… como as ideias surgem?
– Elas simplesmente surgem do chão. Às vezes surgem como prole de outras ideias, às vezes cruzam o muro para cá, para se desenvolverem mais, normalmente como bezerrinhos. De vez em quando um passarinho me traz uma semente que logo se torna uma verdadeira árvore; isso acontece muito quando a pessoa ainda é nova. Do mesmo jeito, as ideias revolucionárias parecem implodir nesta idade, e me é um caos controlar todas elas. Mas, mesmo assim, conforme a pessoa vai envelhecendo, a árvore vai apodrecendo e, não raro, se torna um daqueles buracos negros que é a ideia conservadora; aí ela vem e começa a sugar todas as ideias, absolutamente todas. Em certos casos, este buraco é tão forte que suga todos nós, pastores de ideias, junto. Aí não tem mais jeito; acabam-se as novas ideias e a pessoa passa a viver somente baseado nessas conservadoras.
– Isso é terrível! – exclamei.
– E quase inevitável com qualquer pessoa. Entretanto, sempre há aquelas de um solo muito fértil, que não para de ter ideias, e é destas que mais gostamos; cuidamos com carinho de todas as suas ideias, protegemos todas elas, e ele não se esquece de nenhuma delas. Nestas mentes podemos ver muitas ideias partirem, algo que não nos deixa de todo tristes, mas extremamente felizes. Dar asas às ideias para cruzarem aquele muro é a melhor sensação do mundo.
– E a pior?
– É quando uma ideia morre. Quando ela simplesmente desaparece; não há coisa mais terrível para nós, pastores de ideias. Não quando ela é sugada por uma ideia conservadora, nem quando é abatida pela necessidade; é quando ninguém se lembra dela, e ela acaba morrendo porque ninguém a quis. Isto é terrivelmente triste.
– Mas e…
– Ei, olha lá, ali vem um abatedor! Normalmente ele vem do outro lado do muro, cruza para cá e acerta a ideia que não daria certo. Está vendo ali?
Um brutamontes com uma cara um tanto bovina, e um anel de verdade no nariz, usando apenas uma calça e nada no tronco musculoso, caminhou com uma clava em direção ao porco com jatos-propulsores e sem piedade o destruiu, com um só golpe.
– É algo triste, mas tem de ser feito. Afinal, não podemos manter ideias que não valem a pena para sempre, não é? Não é produtivo, e ainda tira o pasto daquelas que realmente valem a pena.
– Ei, para onde ele está indo? – perguntei assustado, conforme o monstro se aproximava de mim.
– Ele vai destruir mais uma ideia que não vale a pena. Adeus – disse o velho pastor, cachimbando.
A clava caiu dura e impiedosa sobre minha cabeça, e eu nada mais vi; quando dei por mim, estava deitado na minha cama, e meu relógio de cabeceira me indicava que apenas quinze minutos haviam se passado desde a última vez que eu o olhara.
E, se querem saber a verdade, eu juro que vi uma ovelhinha sapateando na minha frente e indo embora para o quarto dos meus pais. Mas não digo nada.

O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais