Os maléficos cortadores de frango
Que máquinas de assar frango são televisão de cachorro, todo mundo, em especial nossos amigos caninos, já sabem. Contudo, vivenciar a desaventura que é encarar este espetáculo frangal é uma bênção – e maldição – que normalmente apenas estes quadrúpedes possuem; mas, como não poderia deixar de ser, eu tive o prazer e desprazer de encarar esta des-peripécia.
Domingão, dia dos pais. Há uma ou duas semanas a previsão do tempo já anunciava a chegada de uma frente fria, mas, como de costume, todos nós somos completamente céticos quanto a isso – para horror dos britânicos – e ninguém esperava (exceto pelos meteorologistas e alguns outro mais crentes – e os britânicos) que as temperaturas caíssem tão abruptamente como caíram naquele oito de agosto de dois mil e quatro.
Minha família é composta por quatro membros: meu pai, minha mãe, eu e meu cachorro. E é claro que, quando se trata de comprar alguma coisa, eu tenho de ir pelas seguintes razões:
– Meu pai não quer ir;
– Minha mãe não quer ir;
– Meu cachorro até poderia ir, mas não tem polegares opostos para segurar a sacolinha, o dinheiro ou até girar a maçaneta; e
– O fato de minha mesada estar em jogo por ordens superiores.
Logo, como mostrado acima, eu não tinha escolha. E segui para meu triste destino, a meio quarteirão de casa.
La Ville Eat Place (uma vergonha para os leitores que sabem inglês e estão confortáveis em suas cadeiras lendo esta crônica sobre Davids, frangos e cortadores terríficos de frango) erguia-se vaidosa em seu um andar térreo, comportando café da manhã, almoço e jantar por quilo, lanchonete, padaria, mercearia (ou mercenaria, como seria mais apropriado) e outras milhares de coisas indistintas.
Entrei, peguei aquele cartãozinho com o número que serve para registrar tudo que compramos e segui para o caixa, ambos com apenas um cliente. Entretanto, como era dia dos pais e queria levar alguma coisa para o meu próprio pai, desviei-me para os bolos – um erro fatal. Depois de descobrir o singelo preço de 25 reais o quilo de um bolo de chocolate e nozinhiquinhas (de tão poucas que tinha) e perceber que não tinha mesmo dinheiro para isso, voltei para os registradores, onde apenas uma atendente cobrava as compras de sete pessoas! Por um minuto não teria pegado fila nenhuma! De onde as pessoas aparecem? Será que as padarias, assim como supermercados, têm uma espécie de feitiço para que apareçam pessoas na fila bem na hora em que você vai pagar?
Pedi o meu frango e segui para fora, no frio de uns doze graus, onde havia dois homens (note que há um minuto não havia nenhum), o cortador e as cinco máquinas. Esperei pacientemente por fora – remoendo-me por dentro e congelando-me em ambos os lados – enquanto os dois decidiam com o cortador de frango qual era a ave mais gorda, o que levou vários minutos. Olhava para os frangos e pedaços de carne de boi, rodando e rodando e rodando e rodando naquelas prisõezinhas de ferro, atravessados por uma estaca sobre o fogo, o delicioso aroma do tempero flutuando pelo ar, penetrando nas minhas narinas e criando aquela inevitável sensação de fome.
O vento cortante e enregelante de inverno rasgava o ar (e, acreditem ou não, para completar havia um caminhão de morangos quebrado ao meu lado, berrando esganiçado pelo megafone “Morangos, morangos, morangooooos!”) e eu tremia, tremia, enquanto os frangos rodavam, rodavam, e eu sentia cada vez mais fome, fome. E o maligno cortador de frangos seguia, lento como uma lesma – aliás, mais lento do que uma lesma – guardando os frangos na embalagem, vagarosamente ensacando a embalagem e a entregando aos dois.
Quando estes pegaram os pacotes, afinal, eu poderia saltar de alegria, a qual se dissipou quando o homem do mal perguntou “Ainda falta mais um frango, né?”. E lá foi ele, devagar e lerdo, pegar mais um frango para cortar. E o aroma cruzava minhas narinas, e tudo em que eu podia pensar (além do frio, da vontade de explodir aquele irritante caminhão e de esganar o cortador lesmóide) era a fome que me batia no estômago.
Desnecessário dizer que levou uma eternidade congelante para cortar o frango, entregar aos homens e por fim pedir o meu, enquanto eu encarava as aves girando e girando. Como se não bastasse, uma mulher ainda apareceu, quando o dilacerador malvado soltava a ave premiada da sua estaca para depois cortá-la, e perguntou quantos tipos (dois) de frango havia, explicação que o homem levou um bom tempo para dar, nos mínimos detalhes.
Eu acho que é essa a tarefa destas pessoas. Fazê-lo esperar o máximo possível, para aumentar gradativamente a sua fome, até que queira comprar mais um frango ou carne, vencendo a paciência. Mas eu resisti bravamente e parti com a minha ave, quinze minutos depois de entrar na loja.
Deve ser assim que cachorros se sentem quando ficam, aflitos, olhando a sua comida girar e rodar eternamente, até o dia acabar, a loja fechar e os restos a eles serem dados.
Mas, agora, com licença, porque eu vou comer meu frango com macarrão.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais