Rascunho de uma crônica sobre a centésima crônica
No momento em que começo a escrever este rascunho, vou deixar os meus dedos simplesmente se moverem por sobre o teclado, sem parar para pensar ou tentar corrigir alguma coisa que tenha ficado estrondosamente errada (somente erros de digitação serão corrigidos). É a técnica de escrita maquinal do surrealismo, que eu acho até bastante interessante de se utilizar, porque deixa que o inconsciente (que é mais rápido que o consciente) atue sobre a escrita. Deixa que o id controle, porque o ego está ausente e o superego não está lá para controlar. Por isso mesmo, é o tipo de escrita adequado para se usar enquanto divago sobre um rascunho para a minha centésima crônica.
A centésima crônica tem de ser algo especial. Algo… Não sei. Tem de brilhar. Tem de ser uma daquelas que, quando eu pego para ler, eu fico com cara de trouxa e não acredito que fui eu quem escreveu. Acontece isso somente com uma ou outra coisa minha que eu leio depois e fico realmente inconformado. Como isso saiu de mim?
Nessas coisas, normalmente é o meu inconsciente falando. Para falar a verdade, se querem saber, na maioria das vezes, conforme os meus dedos dançam por cima das teclas como em uma dança de cancã (e acabo de pensar em cancã porque li o novo Artemis Fowl no qual Potrus fala sobre pessoas dançando cancã, e a ideia de um centauro sapateando com uma sainha e um guarda-chuva rosa (flores na cabeça) é hilariante), eu só vou ter ideia do que eu escrevi quando já está na tela, quando eu já estou lendo. Normalmente, o que os meus dedos escrevem, a minha mente não sabe até que os olhos possam ler. É impressionante. E eu não tenho a menor ideia de como funciona. É quase como se um espírito baixasse, sabe?
Enfim, vez por outra em tenho uma dessas inspirações, e eu queria justamente uma dessas para a minha centésima crônica. Porque ela tem de ser especial. Mas, por que, afinal de contas, tem de ser especial? É só uma crônica, oras! Por que esta fascinação com o número cem? Por que não cento e um? Por que não noventa e nove? Por que não duzentos e setenta e cinco e meio?
É uma boa pergunta. Mas, como a sociedade instituiu que os centenários tenderiam a ser especiais, a minha crônica tem de ser especial. Pelo menos duas vezes mais especial que a quinquagésima. E isso vai ser difícil, porque o Pastor de Ideias foi realmente… Surreal. Uma das melhores coisas que eu já escrevi. Uma crônica sobre a escritura inconsciente de crônicas… Fala sério. Quais são as chances de um negócio desses acontecer?
Vez por outra uma fagulha surge na minha mente, movendo as engrenagens da criação. Eu queria que algo assim acontecesse com a minha centésima crônica… Mas, será que vai realmente acontecer? O que será da minha centésima crônica? Será que vale mesmo a pena esperar por ela?
O que pode acontecer nela? Será possível colocar, por exemplo, o chato e todos os seus amigos nela? Ou talvez o pastor de ideias faça uma ponta? Ou algum outro personagem das minhas histórias, como o Patrick, a Hannah, o Omerix, Katrianix ou coisa do gênero? Chekelov pode aparecer? O detetive Donovan sei lá o quê, daquela estória doidona?
Ou então, seria uma festa nobre, somente para os meus melhores contos? O chefe poderia vir? O Polvo estaria convidado? Ou, quem sabe, o Mr. Brown?
Não sei. A crônica teria de ser especial. Teria de ser uma festa de gala com todos os tipos de convidados, algo como uma entrega de Oscar para as crônicas. Aliás, para os cronicandos. As cronicaturas.,,
Seria interessante um negócio desses. Seria realmente muito bom ter uma crônica deste tipo diante dos meus olhos, prontinha, escrita pelos meus dedos antes que eu tivesse noção do que aconteceu. Mas, quais são as chances de algo assim acontecer?
E, ora, vejam só, acabei de escrever a minha centésima crônica. Sobre a minha centésima crônica. Mas nem é tão especial quando eu pensava…
O que vocês acham?
Nota do autor, setembro de 2021: eu acho super interessantes estas crônicas metalinguísticas. Na realidade, meu processo de escrita permanece mais ou menos assim; eu não sento mais diante do computador sem ter ideia do que vou escrever, claro, mas, no geral, eu só tenho uma ideia ampla do que vai acontecer, algo como uma estrutura, e minha mente vai, parcialmente sozinha, completando os espaços, colocando os tijolos e fazendo o acabamento. De vez em quando, eu já tenho uma visão completa de uma cena, como se o quarto já estivesse pronto e bastasse digitar; algumas vezes, não, e coisas interessantes vão surgindo, algumas conexões que uso no futuro e diversas vezes conexões inconscientes que eu não esperava ter feito. É algo encantador. De qualquer forma, meu processo de escrita e elaboração de histórias melhorou muito (graças a Deus) de lá para cá. Mas ainda há coisas que não consigo explicar.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais