Separação
E lá estava você. O pequeno Aaron havia, afinal crescido. E estava lá, debaixo da rupá, casando. Sim, casando! Logo vocês iriam sair juntos para a lua de mel e depois só voltariam para casa para visitar. Nas festas, alguns fins de semana sim, outros não (vocês têm de visitar a família da mãe dela também, lógico), talvez, algum dia, viriam comemorar o começo ou o fim de algum shabat. Mas não prometiam; não, você trabalha e não podia sair assim, por motivos religiosos, ou perderia o emprego, e eu entendo. Entendo mesmo. Claro, penso que deveria haver mais espaço no mundo para estas coisas tão importantes que nos trazem mais para perto de Deus, mas, fazer o quê, pelo menos até o Messias chegar, nós vivemos em uma terra de cristãos. Temos de conviver com as regras do mundo.
Mas Aaron, a verdade é que eu queria saber quando, exatamente quando eu perdi o meu controle sobre você. Quer dizer, não exatamente isso, não controle, per se, mas aquele poder de impressionar, aquele poder de… Não sei, aquela coisa que todo pai tem, que faz o filho o ouvir com surpresa, com quase maravilha nos olhos, que dá aquela sensação de “Puxa, eu sou a coisa mais importante no mundo do meu filho”. Foi quando você resolveu namorar (e depois noivar e, mais ainda, casar mesmo!) uma pessoa de fora da comunidade?
Não sei. Eu e sua mãe sempre nos esforçamos para ficar dentro da comunidade. Amigos, cônjuges, até mesmo funcionários. Você cresceu neste meio, e era esperado que mantivesse a tradição, mas não. O mundo se abriu para você, e, é claro, você conheceu pessoas de fora da comunidade. Era esperado.
No começo não falamos muito, achamos que não ia durar, como todo bom namoro de criança, mas quem diria, ó Aaron, que quando você a conheceu, você já não era mais criança! E passaram os anos, e nós pensávamos realmente que um dia acabaria, e, se viesse de fato um casamento, seria dali a muitos e muitos anos. Mas vocês noivaram. É, noivaram de verdade, com aliança e tudo. E meu mundo desmoronou; para onde ia meu filho? Foi quando, afinal, percebi que você não era mais criança. E o casamento chegou, talvez rápido demais. Como o tempo pode ser cruel conosco às vezes, não?
Mas talvez não tenha sido aí que perdemos nossa influência sobre você; quando nos separamos. Será que foi quando começou a ir para as baladas? Ai, quantas e quantas noites mal dormidas, esperando você me ligar para ir buscá-lo, perguntando-me se tudo estava bem, pensando com quem você estava, se estava bebendo, se estava fumando, ou pior! Sempre o pior também me passava pela cabeça. A noite, como o tempo, também pode ser muito cruel, às vezes.
Ou será que foi quando você tirou sua habilitação? Acho que o seu maior momento de liberdade foi este, não, Aaron? Poder ir e vir a seu bel-prazer. Não vou dizer que não fiquei feliz por não ter mais de levantar para buscá-lo, ou dar carona, ou que não me ajudou com seus irmãos, porque me ajudou muito, mas… Também não vou deixar de dizer que me senti um pouco menos importante. Se eu já não era essencial na sua vida de adolescente, a partir deste momento, tornei-me ainda menos importante.
No entanto, isto não foi um fator primário, foi só um fator contribuinte, assim como a faculdade. Você cresceu, Aaron, sua cabeça mudou, e que garoto você se tornou. Aliás, que homem! Muito mais inteligente do que eu ou a sua mãe. E isto… Puxa! Como foi difícil, como é difícil! Do que eu posso conversar com você agora, Aaron? O que eu posso falar, que não me faça parecer um idiota? O quanto este conhecimento a mais que você tem nos distancia? Eu não sei. Ah, Senhor, e como eu gostaria de saber. Como eu gostaria.
Você foi para outra cidade. Começou a escrever o seu futuro. E não era mais eu que o ditava; não, não, eu já fiz minha parte. Dei-lhe a caneta e as folhas. As escrituras são suas, agora.
Ou talvez… Talvez… Tenha sido naquele momento. É mesmo. Aquele momento tão especial na vida de todo judeu. Quando você completa seus treze anos e faz o seu bar-mitzvá. Ah, e que bar-mitzvá não foi! E como ficamos orgulhosos, eu e sua mãe, quando você leu, quando você rezou, quando você cantou. Naquele momento, soubemos que você se tornou um homem, dono de suas próprias ideias. E acho que você percebeu também, e sua cabeça também começou a mudar.
Mas acho que não foi só isso. Pensando bem, acho que não foi uma coisa só. Acho que foi tudo junto. Uma conjunção de fatores.
Você cresceu, meu filho querido, e eu estou orgulhoso. Como estou orgulhoso! Só queria encontrar as palavras para lhe dizer isto, mas eu não sei. Meu pai nunca me falou uma coisa dessas. Imagine! Sério como ele era? O máximo que conseguíamos era ver no seu olhar. Você consegue ver no meu olhar, Aaron? Consegue ver meu orgulho?
Não sei como falar, mas talvez não precise. Acho que você pode ler. Só espero que estas minhas singelas palavras sejam o suficiente.
Nota do autor, setembro de 2021: minha família nunca foi religiosa, mas o sentimento de pertencimento a um povo, muito mais do que a uma religião, sempre permaneceu. De certa forma, ao escrever esta crônica, pensava como meu pai pensaria, se pudesse pôr em palavras tudo o que gostaria de me dizer. E acho que talvez não seja o único; o pano de fundo tem um quê religioso, mas não deixa de ser a mesma sensação de todos os pais, de perder a influência sobre os filhos.

O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais