Tênis de pé rapado
No começo, havia o verbo. E creio que, depois do verbo, provavelmente veio o sapato. Afinal, calçados nos acompanham desde a antiguidade, e hoje são ícones de moda, essenciais, representam as hierarquias sociais, pobres aspiram com o dinheiro que não têm a algum dia tê-lo para comprar o mais novo tênis da Náiqui – mesmo que isso signifique passar fome por um ano. Calçados. Ou você tem, ou você tem.
Tudo isso começou porque meu pobre tênis está todo destroçado, coitado. Depois de um ano e meio de serviço, pode-se ver por sob sua sola o outro lado. Está rasgado, quase todo destruído, imundíssimo – aliás, isso ainda é limpo para ele. É, sem dúvida, um tênis viajado; pelo menos, tanto quanto eu. Visitou Peruíbe, Campo Mourão e até Foz do Iguaçu. E teve o prazer de pisar na bosta de cada um destes lugares. Em Peruíbe, especialmente, todos os dias.
Foi amor à primeira vista quando o comprei, lembro-me bem. Estava de saco cheio de gastar trinta reais para comprar tênis porcarias, que estragavam em um mês. Virei para um vendedor: “Quero um tênis bom e bonito, não importa o preço. Tem de ser confortável para quem tem pé chato”. Claro, porque pé mais chato que o meu não existe. Ele é tão chato que consegue até beliscar azulejo, tamanha a chatice. E o vendedor me veio com uns seis pares números 43 – etcha pezão! –, mas foi logo pelo primeiro que me apaixonei. Os outros provei só para que não ficassem com ciúmes, porque eu sabia que aquele tênis prateado, com amortecedor, o meu belo Mizuno Wave, era o tênis destinado a mim. Muito confortável, sustentava o pé inteiro, em cima, dos lados, em baixo, parecia que andava nas nuvens. Na época era R$ 149 (Nota do autor, 2020: o mesmo tênis, atualmente, custa em torno de 699 reas). Uma facada, mas, se levasse em conta o quanto já gastara comprando tênis com autonomia de jumento argentino (Nota do autor, 2020: vamos considerar como “Autonomia de carro elétrico chinês, para você entender do que eu estava falando na época), era até que barato. Eu que o diga agora, depois de tanto tempo!
Por curiosidade, passei a procurar tênis iguais ao meu. Estão em falta, novos estão a vir, mas, mesmo em promoção, estão caros, R$ 259, pelo menos. Uma serrada-elétrica! Decidi que realmente não vou comprar, tanto porque sou pé-chato-rapado, como porque não quero me desfazer do meu tênis. Minha vida está nele. Cada passo que dei em um ano e meio. É como se um décimo da minha vida estivesse preso naquela carcaça destroçada, usada e, por incrível que pareça, não fedida.
Por causa disso mesmo, passei a observar as pessoas e os seus calçados, lá no Shopping Butantã. Pode-se perceber o status quo da pessoa que os usa, sua personalidade. Sua alma está inscrita, nos mínimos detalhes, nos calçados que as pessoas usam.
Mulheres, entre os 20 e 40 anos, sempre de salto alto. As adolescentes usam tênis dos mais variados, não ligam para sistemas de amortecimento, mas sim para o overóu luqui – têm pelo menos 50 pares, cada um combinando com um tipo de tiara ou brinco, já que todos os uniformes são iguais. Para sair é a mesma variedade colossal; têm 50 tipos diferentes de calçados, entre eles sandálias, sapatos, keds, tênis, Óu Istars e até havaianas, cada um em 50 cores diferentes em efeitos especiais. Quanto às velhinhas, percebe-se sua vida ativa pelo que usam; velhinhas que não se mexem muito, são mais aquelas chinelas de pano, usam keds, sempre brancos; as que se mexem mais, fazem mais exercício, usam tênis com amortecedores, mas não muito caros, porque gastam grande parte do dinheiro com o remédio. Algumas velhinhas que ainda não alcançaram a senil-seriedade usam sapatos de salto pontudos, diminuindo cada vez mais na altura conforme envelhecem, porque os ossos já não aguentam mais o tranco.
Já para os homens, há castas: os esqueitistas e surfistas, que usam seus tênis largos e desamarrados, os riquinhos, com o último náiqui, de 800 reais, no mínimo, e os outros mais normais, com tênis menos tecnológicos, todos eles tendo juntado uma boa grana por muito tempo para consegui-los. Há os adultos não esportistas, sempre de sapato, e os esportistas, que veem em seus tênis o mesmo que em carro, ou seja: quanto mais envenenado, melhor, comprando o tênis mais turbinado que aparece à sua frente, e os descolados (palavra agradável para pés-rapados), que usam sandálias. Até os velhinhos usam tênis turbinados. Depende apenas se se exercitam ou não. Aqueles que não, usam sempre o bom e velho sapato. E, claro, nenhum homem, como regra geral, tem mais que dez pares de calçados: os mais abstados com mais, tendo um para jogar tênis, outro para futebol, outro para handebol, outro para basquete e uns até para pólo aquático – se tiver mais que isso, já está começando a ficar meio esquisito –; os executivos possuem pares pouco diferenciados um do outro, uns três tipos diferentes só, cada um com três variações de cores, para combinar com o paletó; os mais pés-rapados, como eu, possuem um tênis, uma sandália e um chinelo, nada mais.
Mas algo que eu não vejo comumente é pessoas andando descalças. Isso porque tênis são obrigatórios na nossa vida em sociedade. Acho que são tão importantes, mas tão importantes, que a economia mundial entraria em colapso se, de repente, todos os calçados desaparecessem da face da Terra.
Não sei se sou eu o diferente ou não, mas adoro andar descalço. Será pelo capricho de ir contra a sociedade? Contra as regras mundiais? Ou será simplesmente porque não há nada como dar uma boa pisada descalça na terra, na areia, se molhar nas poças?
É um mistério. Mas, mesmo assim, continuarei com o meu bom e velho Mizuno. E, pelo visto, quando ele se desfarelar, vou ter é de andar descalço mesmo, porque eu sou é um pé-lixado. E muito.
PS: Nessas horas, eu gostaria de ser um hobbit. Imagine a grana que eles economizam, não tendo de comprar sapatos!
Nota do autor, outubro de 2020: atualmente, encontro-me na fase da vida adulta: alguns pares de sapatos sociais, de cores e estilos diferentes para combinar com a roupa social; uma mocassim, para parecer mais descolado; uma bota para o frio; um tênis (ainda um mizuno!) para exercícios; uma sandália; duas havaianas (acabei comprando uma de emergência em uma viagem em que havia esquecido de levar as minhas!), e tenho alguns acumulados que ganhei de presente, mas não uso mais e deveria doar.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais