Trocando Celulares
Eram mais uma vez o agente 00 à esquerda e o agente 00 ainda mais à esquerda na grande Burguesópolis¹, buscando, para variar, uma loja de celulares. Só para não perder o hábito, subimos os trilhões de andares de estacionamento, cada um com um nome de uma flor, para só encontrar uma – de fato, só havia uma esquecida, literalmente jogada ao canto, ao lado da amurada lateral do local de parar os veículos automotivos (e eu juro que eu fiquei com medo que aquilo despencasse, porque a paredinha parecia super fina) – vaga disponível, em um dos penúltimos andares. E, para completar a tradição, depois disso nos perdemos no Shopping monstruoso.
Se existe alguma tolerância de tempo para depois que você entra e pega o cartãozinho, para se arrepender e ir embora ou simplesmente entrar, comprar algo rapidamente e sumir, ela deveria ser de, pelo menos, uma hora naquele lugar, porque foi mais ou menos o tempo que gastamos para achar um espaço para largar o nosso transporte e achar a loja aonde queríamos ir.
Subimos dois andares, descemos dois andares, subimos dois de novo (falo dois porque não tenho certeza, mais parece que quatro andares ocupam o lugar de apenas um par, e você não sabe exatamente definir qual é qual), cada vez mais horrorizados com o preço das coisas, até que, desistindo (muito embora tivéssemos achado a avenida das operadoras de celular, que contava com Vivo e TIM [e, logo mais, tenho certeza, a Oi], mas não com uma Claro), perguntamos para um guardinha.
– Desçam aqui, entrem à esquerda, vão até o fim e, na Avenida de Serviços, à esquerda, fica a loja.
(O que é uma Avenida de Serviços? E por que a Claro fora relegada a ela, e não à Avenida das Operadoras?)
Encontramos a loja (Graças a Deus!!!) e entramos; dezenas de cadeiras vermelhas, arredondadas e pomposas, de frente para umas seis ou sete cabinezinhas, cada uma com um lepi-topi, e uma ou outra com um clarista. Ao redor delas, uma moça da Motorola, provavelmente para fazer propaganda, e uns dois caras vestidos opressivamente de preto.
Não sei por que, de alguma forma, tudo naquelas lojas de celular parece opressivo. Talvez por causa das cores absurdas – o vermelho irritado – ou das formas arredondadas das cadeiras, ou talvez porque os atendentes estavam mais bem vestidos do que eu (o que é uma boa teoria), ou até mesmo porque a vitrine exibia zilhares de celular bilhares de vezes melhores que o meu (o que também é uma boa teoria) até o ponto em que o pobre coitado tinha de se esconder em meu bolso, cada vez mais fundo, fugindo amedrontado do búlim celularesco.
Um dos homens de preto pegou um bloquinho (acho que isso é uma das coisas que nos assusta! O bloquinho típico de guarda de trânsito, como se estivessem nos multando por termos celulares porcaria!), anotou o nome do agente 00 ainda mais à esquerda e o número do celular e, lançando um olhar compenetrado sobre este, previu que era pós-pago. Estava mostrando que sabia algo a mais do que nós! Arrancou o papelzinho e tentou entregá-lo para uma colega, mas esta já estava ocupada, e, com um suspiro interno de tristeza, conformou-se em nos atender.
Enquanto isso, o agente 00 à esquerda olhava tudo ao seu redor, com sua curiosidade natural, e, muito embora estivesse curiosíssimo com o blequiberri exposto pela Motorola, a moça que o apresentaria assustou-o o suficiente para que não arriscasse sequer lançar um olhar muito longo naquela direção, porque provavelmente o apresentaria por mais de uma hora, até que o cliente de saco o cheio o compraria, só para ela ficar quieta.
Por fim, voltou para o lado do outro agente.
O atendente pegou o número da linha e digitou no computador que tudo sabia; neste meio tempo, ficávamos sem jeito, olhando para cá e para lá, esperando a resposta da pergunta: “Ele vai melhorar, doutor?”.
– Você tem o plano 40 minutos – indagofirmou, no que meu pai assentiu.
Maldito computador que tudo sabia! Aquilo era só um exemplo de prepotência, uma indireta para dizer que sabia tudo da nossa vida! Para mostrar que, com o simples bater de teclas, conseguiria descobrir tudo de que precisava e, talvez com mais um bater, garantir a nossa morte!
– Você tem 36000 pontos… – começou em sua trama.
Mas vamos por partes; primeiro estes milhares de pontos. O fato de pontuar em milhares só serve para nos enganar; você vai ver um dia e, Nossa, tenho cem mil pontos!, mas, quando percebe mesmo, é como um monte de ienes, no final não valem nem cinco centavos.
– …Mas nós não trocamos os pontos por celulares, e sim por descontos na compra de novos aparelhos…
Outro truque: eles dão descontos, por isso você acha que está pagando menos, quando, no fundo, você já pagou pelo seu futuro novo aparelho pelo menos duas vezes conforme usou o seu celular quintilhares de vezes para acumular tantos pontos, e, por consequência, enganado pelo desconto, acaba comprando um aparelho de que não precisaria e bem mais caro do que você inicialmente esperava. É tudo um truque, uma ilusão! Cuidado!
– …Além disso, o senhor ainda não pode trocar, só daqui a dois meses, porque o senhor trocou de aparelho há sete meses, e nós contamos com uma fidelidade de 12 meses, mas eu posso diminuir para 9 para o senhor.
E essa fidelidade? Que é isso? Pra que serve isso, afinal? Qual o problema de eu gastar aos montes e sair trocando de celular de mês em mês?
A resposta segue abaixo.
– Mas eu vou perder pontos, não vou? – perguntou o agente.
– Sim, daqui a dois meses o senhor vai ter… 33000 pontos.
Ai está; eles nos dão 2000000 de pontos quando entramos no programa, e ficamos super felizes com isso, até que descobrimos que, quando formos realmente usá-los, já os teremos perdido porque expirou o prazo devido à fidelidade.
(Ah, irônicas analogias da vida!)
– Mas o senhor ainda pode trocar seus pontos atuais por estes…
(Até agora não consegui decifrar a contradição na qual ele caiu. É um truque da matriz, eu sei)
– …Que sairiam de graça, no final das contas.
Olhamos para os aparelhos; um mais sem graça que o outro, os dois o mais básico possíveis. Até o meu era melhor, e isso porque saiu 69 reais.
Olhei para aquele ser inexorável, aquele homem que portava, em suas mãos, o poder da vida e da morte; em sua roupa preta, com seus óculos prateados, o cabelo curto engelzado para cima, um anel de ouro na mão esquerda (de casamento? Duvido. É tudo parte do marquetim!) com figurinhas que pareciam homens incrustadas (uma para cada um que ele dominou com sua lábia!!!). Sua aparência inteira parecia zombar de nós, pobres mortais.
Realmente não entendo esta neura que todos têm com celular.
Primeiro: todo mundo tem de ter. Por que todo mundo tem de ter? Por que temos de ser acessíveis o tempo todo? A verdade é que o celular atinge as necessidades narcísicas mais profundas do nosso ser. Tendo-o, sentimo-nos importantes; achamos que, por podermos ser encontrados a qualquer minuto, seremos inevitavelmente procurados e por isso somos importantes, ou vice-versa.
Segundo: não basta ter um, tem de ser bom. Muito embora, quando você pare para pensar, o celular só sirva mesmo para ligar, receber ligações e trocar torpedos, existem pessoas por aí dispostas a gastar milhares de dólares só para poder entrar na internet, usar o Word, checar e-mails, ouvir músicas, ver filmes, tirar fotos, gravar seus filmes, ter um bichinho virtual, monitorar os filhos e, futuramente, se bobear, até fazer sexo pelo celular. Por que, meu Deus, por quê? Resposta: a necessidade narcísica de sermos todos super-homens.
Terceiro: você pode avaliar a renda disponível²* de uma pessoa pelo celular. E não diga que não é verdade; vejamos por aqueles que trocam de celular constantemente – é porque têm dinheiro sobrando o suficiente para isso. E mesmo aqueles que os ganham em promoções, pois, convenhamos, ninguém ganha promoções sem usar o celular (como mostrado acima), logo, se eles ganharam algo grande, é porque usaram, e muito – e, se usaram, é porque podiam pagar a conta, logo…
Dá para se escrever um tratado só sobre o celular e a fragilidade da sociedade humana. Mas não vou me cansalongar.
Meu celular é um dos mais simples, e estou muito feliz. Não, não tenho uma câmera, não, não posso acessar a internet, e não, não quero fazer sexo pelo celular. Consigo me controlar para só fazer essas coisas em casa, com seus aparelhos apropriados (essa frase nesse contexto ficou meio estranha…).
Por essas e outras, os dois agentes se olharam, levantaram da mesa e, ainda um pouco intimidados pela pompa do pessoal da loja, foram embora sem levar nada.
Nota do autor, setembro de 2021: eu permaneço sem querer ter o último celular da moda, mas, infelizmente, fui vencido pela necessidade. Não, não a necessidade narcísica; o fato é que inventaram um tal de zap zap. É, pois é. E, (in)felizmente, ficou muito mais fácil de trabalhar com ele – bem, e o resto vocês já sabem. Mas, eu sempre me preocupo com o fato de estar usando demais esse aparelho dominador de mentes, então, tenho tentado manter controle de horário e de tempo, em especial para alguns aplicativos. Em 14 anos, muito mudou – e as pessoas atualmente vivem perdidas nas suas telinhas.
¹ (Nota de 2021) Para quem não leu a crônica “Burguesópolis”, trata-se do Shopping Iguatemi.
²* A renda disponível é muito diferente da renda total; renda total é tudo que a pessoa ganha, e renda disponível é aquilo que ela tem para gastar com coisas nem um pouco essenciais, entre elas restaurantes, cinemas e bugigangas tecnológicas de uso esporádico.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais