Um hamster à espera de um milagre
Eu acho que eu vi um ratinho. Sim, eu vi um ratinho! Meu Deus, tem um ratinho no meu quarto!
Era de noite, uma noite calma e tranquila de domingo – ainda não era a hora do Fantástico, o que significava, graças a Deus, que o domingo e o fim de semana ainda não haviam acabado –, durante a qual eu me encontrava sentado em minha cama, em Peruíbe, lendo um livro – podem achar isso triste, mas o que posso fazer?
De qualquer forma, estava eu lá, quando vejo um bichinho passando pelo meu lado, pela visão periférica. Era redondo, gorducho, meio marrom-claro meio branco, com duas pequenas orelhinhas e olhos pretos – achei incrível notar tantos detalhes de uma só vez, de relance –, e correu pelo meu lado, no chão, entrando sob o móvel da televisão.
Sim, era um rato! Aliás, não um rato, um hamster, mas como as probabilidades de aparecer um hamster vindo do jardim eram muito menores que a de aparecer um rato, fui com o rato. Com exímia – cof, cof – agilidade, saltei da minha cama para o sofá, a menos de um metro dela, e fiquei olhando curioso para a figurinha que havia acabado de passar por mim. Depois, fui para o chão e, com todo o cuidado, comecei a olhar sob a cama para procurar o pequeno ratinho.
Tentava discernir alguma coisa daquela negritude toda, quando a minha mãe apareceu.
“Eu acho que entrou um hamster no meu quarto”, falei. “É sério!”. Muito embora se alguém falasse isso para mim eu iria cair na gargalhada e achar uma piada muito fraca, minha mãe foi buscar o meu pai – sempre chame o cara maior e mais forte da casa para cuidar de assuntos do tipo. Enquanto isso, eu puxei a cama, mas nada do pequeno hamster aparecer.
Minha mãe voltou e meu pai veio junto. Eu puxei o móvel, já colocando os sapatos nos pés, mesmo sem meia – vai que me morde e transmite alguma coisa? As aulas de biologia foram o suficiente para me lembrar de nunca andar descalço quando tem um roedor na casa –, e comecei a puxar o móvel da televisão.
Deixe-me lhes explicar um pouco da disposição do meu quarto, antes. Você cruza a porta, que não abre inteira, e a bate contra uma cama, cujo estrado é pequeno demais para sustentar o colchão, o qual fica um pouco para fora. Colada a ela, um móvel, que uma vez fora uma estante, mas, cortado ao meio, serve para a televisão, directv e vídeo. Tudo isso na parede da esquerda, onde fica a janela, também. Na parede em frente, colado com a estante-móvel-porta-tv, fica o meu armário, que tem mais badulaque que camelô da 25 de março. Note: tudo quebrado, sem funcionar, que não usamos desde o milênio passado – piada velha, mas é verdade.
Afinal, desde quando se usa uma enceradeira para piso frio ou decorflex, aquele piso de borracha? Mesmo assim, só esse minúsculo e levíssimo armário – tanto quanto uma baleia – ocupa a parede inteira. A parede da direita é de tijolos e tem um pufe azul, enquanto que a parede de trás, onde fica a porta, comporta uma escrivaninha – que uma vez fora uma mesa de computador – e um sofá – que uma vez fora da caseira, mas passou para mim quando ela comprou um novo.
Pronto, este é o meu quarto. Acho que ele mede uns três metros por quatro, se não me engano (note que ele é um pouco torto).
Então, lá estávamos nós, pura expectativa. Quando puxei o móvel, o bichinho começou a sair. Mas meu pai, esperto como ele só, bateu no móvel para tentar atraí-lo e, é claro, como os anõezinhos da história de Gulliver, o coitado, na proporção de três gigantes contra um pequeno polegar, correu para trás do armário.
O que se seguiu depois me fez lembrar daquele filme, onde um ratinho só vence dois ou três ladrões. Pois é, no nosso caso, um hamster quase venceu quatro pessoas.
Minha mãe resolveu chamar a Jora, a caseira – o nome dela era Iracema, mas quase todo mundo a chama de Jora, apelido de Joraci (o pai queria Iracema e a mãe, Joraci. Quando foi pôr tudo no papel, virou Iracema, mas, a mãe, irada, sempre a chamou pelo nome que queria) – dizendo-lhe que um bicho deste tamanho (afaste suas mãos algo em torno de dois centímetros. Agora, afaste mais um pouco, mais um pouco… Ah, quer saber, imagine a distância do seu pé ao seu joelho, pronto), quando, na verdade, não passava do tamanho do meu punho fechado. Ah, e, de acordo com ela, já era uma ratazana, não importava o quanto eu falasse que era um hamster.
Nesse meio tempo meu pai e eu praticamente desmontamos o quarto, empurrando a cama de lugar, movendo o móvel da tv, tirando o sofá até que, por fim, arrumamos espaço para empurrar o armário.
Mas quem disse que dava para puxar aquele elefante? Era pesado demais para qualquer um de nós. Na ponta direita, eu puxei por baixo e a Jora por cima, usando uma barra de ferro, até que conseguimos afastar ele uns dez ou vinte centímetros da parede. Mas não dava para ver. Tentamos bater do outro lado para que ele saísse, mas de nada adiantou. Foi quando resolvi utilizar toda a minha agilidade maneta para subir sobre o armário.
Olhando de cima, vislumbrei um pequenino vulto se movendo à esquerda. Eles me deram uma vassoura, depois um daqueles ferros que se usa para abrir buraco nas ruas (imagine uma talhadeira. Agora, imagine-a com um metro e meio. Isso aí), mas nada conseguia alcançar o bichinho para empurrar.
Como se lesse a minha mente, a Jora foi pegar a rede de piscina, longa, a qual eu usei, mas de nada serviu – como o armário estava inclinado, o bichinho estava em um canto tão apertado que eu não conseguia empurrar o seu traseiro.
Comecei a limpar o espaço sobre o armário, tirando duas televisões pifadas, bagulhos, badulaques, tralhas e até uma lâmpada – que sem querer eu deixei cair e quebrou –, para conseguir andar livremente.
Mas de nada adiantava. Foi quando meu pai resolveu subir. Eu desci e ele, usando todos os seus noventa quilos de puro pânceps – os avantajados músculos da barriga, que você desenvolve apenas após muito treino levantando o copo e o garfo – subiu, com medo da altura – uma cena cômica, de fato.
Lá de cima ele tentou cutucar o ratinho, o qual ia e voltava. Jora e minha mãe, do outro lado, concentradas com uma peneira para pegá-lo, vibravam de expectativa toda vez que ele colocava o focinho para fora. Mas quem disse que ele passava?
Por fim, meu pai, tremendo ainda mais, desceu, e nós empurramos o armário mais um pouco, o suficiente para eu entrar lá atrás. Preso como um rato em um aquário, eu andei até a outra ponta e tentei cutucar o roedor – mas quem disse que eu alcançava? Ele era mais esperto que qualquer um de nós!
Usando aquela talhadeira gigante, meu pai puxou a outra ponta do armário uns dois centímetros – o suficiente para o hamster passar. Depois, subiu no armário para ver a situação. Eu, lá embaixo, fazendo vários sonoros “Bu!” para que o bichinho saísse; Jora e minha mãe na outra ponta, com uma peneira e um pote para pegá-lo.
Por fim, de algum modo conseguimos empurrá-lo, e ele saiu! Jora o prendeu com a peneira, eu saí do outro lado e, usando uma revista novinha em folha para passar por baixo da peneira e prendê-lo, transferimos o rato para o pote. Neste ínterim, meu pai tentou descer e, não fosse a Jora, ele nunca teria conseguido – tudo bem que ele quase caiu com seu traseiro em cima da coitada, mas isso não conta.
Quando o colocamos no pote e demos queijo (ele comeu só um teco), descobrimos que ele era ela (ainda não temos absoluta certeza, mas acho que não é tão importante assim). Como uma alusão ao The Green Mile, eu a chamei de Mrs. Jingles – ao passo que minha mãe a chamou de Penélope, sei lá eu por quê, e a Jora de Aparecida, porque ela, literalmente, apareceu. Por enquanto ela ainda está sem nome, mas, convenhamos, que importância tem um rato ter nome ou não?
Demos ração de cachorro para ela (acredite ou não, ela prefere isso a queijo), que ela enfiou de uma vez na boca para depois tirar e ir comendo devagarinho, e hoje de manhã fomos à loja de ração, tentar descobrir o que fazer. Minha mãe foi categórica: Levar para São Paulo, não! Eu poderia fazer como aquele cara, que tem um selo no jipe: “Quando eu comprei este carro, minha mulher disse: ou ele, ou eu. Até hoje sinto um pouco de falta dela”, mas não ia ter onde colar no bichano (tudo bem, tudo bem, minha mãe ir para fora de casa no lugar do rato não ia ser uma boa ideia – ratos não sabem dirigir, né?).
Por fim, ficou decidido que ela vai ficar aqui, na gaiola que nós compramos, que tem quatro andares, uma rodinha (na qual ela até agora não andou), dois comedouros, um bebedouro e uma casinha de plástico. Ficou tão legal que ela agora está aqui do meu lado, na casinha, mordiscando uma folha.
Realmente, até agora fico pensando: como que um hamster foi parar no meu quarto?
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais