Vestibular
Era um garoto, que como eu, estava prestando vestibular para medicina. Não preciso dizer o quanto o moleque estudou, preciso? Fez cursinho junto com a escola, foi bem pra caramba, foi o melhor da escola em todo o terceiro colegial, mas, na hora que foi fazer o vestibular… Xiii…
Inscreveu-se para a Unicamp. Para a Fuv(d)est, claro. Para a Unifesp, Unesp, até mesmo Ufscar, cujo curso ainda nem foi aprovado pelo MEC, e PUC, sua reserva, para a qual só iria se não entrasse em nenhuma outra, já que é paga – e muito paga.
Bom, o vestibular foi aquele desespero só. Quer dizer, não pra ele (claro, quando ele via o gabarito, sim, aí era um desespero só, mas durante a prova não, ele estava tranqüilo), mas pra família dele, as cinco ou seis ou sete ou oito ou sei lá quantas tias ele tinha, todas se agarrando (e todas gordas, exceto por uma, a qual foi impiedosamente esmagada durante os agarras), torcendo por ele; trocentos tios, os quais não faziam tanta coisa, porque tio normalmente só serve pra trazer lembrancinha quando viaja (o que eles fazem com freqüência); os infindáveis primos, ou torcendo por ele ou torcendo por si mesmos e ele que se vire, porque igualmente estavam competindo (porque, em toda a família, é incrível como sempre tem uma pancada de primos da mesma idade e depois um ou outro que tem entre 3 e 6 anos quando você já tem seus 17); os irmãos (tá, tudo bem, como ele era o mais velho, os irmãos estavam torcendo pra ele não passar, porque o mais velho é sempre o mais esperto e o queridinho da mamãe, e todos os caçulas o odeiam não só por isso como pelo fato de ele ganha roupas novas e eles ficam com elas quando estão velhas e/ou pequenas); os amigos (até mesmo os que estavam prestando a mesma matéria – quando um grupo de vestibulandos de medicina se junta, cuidado porque é algum pacto suicida igual aos que ocorrem no Japão); a namorada, os pais, claro, e os avós; a avó que ligava todo santo dia para perguntar que prova que era, quando era e como ele havia ido apesar de a prova nem ter sido feita; a outra avó que sempre levava um lanchinho para ele fazer a prova; o avô que tentava dar dicas que de nada adiantavam, pelo menos não sessenta anos depois da última vez em que ele pegara em um livro com conteúdo do ensino médio; o outro avô, que tinha sua própria torcida organizada com direito a chapéu, corneta, bandeira, camiseta e balões. E, é claro, o tio por extensão – irmão da mãe dele – que, como todo cunhado espertalhão, dava dicas de como colar.
Apesar disso tudo, o problema veio depois. Dia 5 de janeiro saíram os resultados da PUC e, surpresa, ele passou! Iei! Festa na casa e tudo mais, cunhado trazendo dançarinas do ventre seminuas de dentro de bolos com o cartão de crédito do seu cunhado, o avô com sua torcida organizada, comida de avó por todos os lados, irmãos se despedaçando de ódio, pais quase atravessando o teto do apartamento de felicidade e toda aquela bazófia.
Fizeram a inscrição, pagaram a taxa e tudo mais, ele estava tranqüilo, tranquilão, e fez as últimas provas. Passaram-se as férias, todo mundo na expectativa, e… Decepção. Não passou na Unifesp. Todo mundo ligando pra falar e tudo mais, minhas condolências, você consegue nas outras, coisa e tal (os balões da torcida organizada até mesmo murcharam). Depois, não passou na Unesp… Todo mundo ligando, todo mundo se desesperando. Ele achava que não tinha ido bem nas últimas provas, então…
Acabaram as férias, ele já deixou tudo pronto. Era dia 6 de fevereiro, ele estava resoluto de que não ia passar em nenhuma delas, que ia acabar em Sorocaba, então já arrumou tudo; separou as coisas da mudança, arranjou apartamento na cidade, comprou camiseta da PUC – Sorocaba, até mesmo adesivinhos “Medicina em Sorocaba” (preciso dizer que o avô até mesmo confeccionou camisetas sobre isso para a sua torcida organizada?). Despediu-se dos amigos, dos professores, fez festa, até mesmo terminou com a namorada – namoro à distância nunca deu certo – e no dia 7 já estava viajando para a cidade, de mala e cuia, geladeira, máquina de lavar, tudo, desmontou sua casa e levou tudo embora (claro, ninguém da família se candidatou para ajudar, só o cunhado espertalhão que, obviamente, serviu tanto quanto um urso de pelúcia – a única diferença é que o urso pesava menos e ocupava menos espaço). Sobe escada, desce escada (prédio barato e sem elevador), coisa por coisa, no dia 8 estava tudo pronto, tudo arrumadinho (o avô e sua torcida organizada fizeram um arrastão naquele dia e em questão de segundos – com ajuda das avós, claro – estava tudo um brinco), brilhante e reluzente.
Aí ele descobre que estava na lista de espera da USP. Tudo bem, não estava próximo de conseguir, praticamente todo o mundo teria de desistir pra ele entrar, mas era uma possibilidade. E, no dia 9, descobre que igualmente estava na lista de espera da Unicamp e havia entrado na Ufscar.
Então, taca correr pra São Carlos. Fazer inscrição, despachar a torcida organizada (agora com banda) pelas ruas, arranjar casa para morar, levar os móveis de novo – desta vez eles alugaram um com elevador, já que ia ter mais dinheiro em caixa, mas continuaram sendo eles – o garoto e o pai – os carregadores – e fazer o arrastão pra deixar tudo limpinho, um brinco. Isso, claro, sem mencionar as inúmeras cópias autenticadas disso e daquilo, arrumar firma reconhecida de fiador, renda de não sei quem, número de moradores no prédio vizinho ao da casa da irmã da cunhada da tia de terceiro grau, quantas patas tinha o papagaio do presidente e todas aquelas informações inúteis que pedem quando você vai seguir pelos meios burocráticos. Estava tudo pronto, ele ia começar a cursar a faculdade logo mais, já tinha até comprado camiseta de São Carlos – Medicina – Primeira Turma, 2006!!!, a torcida organizada já estava reorganizada, quando ele descobre que é chamado pra Unicamp.
Explosão de comemorações! Era o que ele queria, Unicamp ou USP, a segunda melhor, porque não teria que sair de casa, mas mesmo assim…
E foi aquele caos. Gente correndo pra cá, gente correndo pra lá, avó sem entender o que estava acontecendo, torcida rereorganizada já escrevendo Unesp ou Unifesp ou Salvem as Baleias nas camisetas, irmãos completamente perdidos (Maldito, entrou em 3!!! Vou escutar isso pelo resto da vida!), amigos sem saber o que acontecia – porque ele estava sem tempo pra nada – e, sem dúvida alguma, cunhado espertalhão encostado na parede sem fazer absolutamente nada.
Tudo bem, foi pra Unicamp, arranjou um apartamentozinho legal, ele e mais um amigo que também havia passado, teve o arrastão, o qual só fez confusão, mas em questão de dias estava tudo arrumado. As aulas já haviam começado, ele já tinha perdido a amada basta cabeleira (três vezes, por sinal), não tinha mais contato com nenhum amigo em São Paulo, da namorada nem se falava (e olha que ele gostava muito dela, mas ela não trocava uma palavra sequer com ele já havia semanas), estava tentando se adaptar à cidade nova, vida nova, casa nova, ritmo, amigos, lugar, nível e tipo de ensino novos, professores diferentes, quando saiu a última chamada da USP.
Eu poderia dizer que ele não passou, mas que apesar disso viveu feliz para sempre (ou pelos seis anos de curso) em Campinas, mas a vida não é assim, iria perder a graça.
Claro, ele entrou na USP. E estavam todos tão felizes (tirando os irmãos, que se mordiam de raiva) e tão de saco cheio de ter de levar e trazer coisa que simplesmente deixaram os móveis com o amigo do garoto e voltaram para casa. Depois de pagar a multa de rescisão de contrato de 3 apartamentos, a matrícula e primeira mensalidade da PUC, sem mencionar os gastos de transporte e comida e camisetas, o garoto estava de volta para a sua casa.
De volta para casa, mas sem seu quarto, porque os irmãos já haviam tomado, nem seus amigos, os quais ou tinham ido para outro lugar ou estavam com raiva porque ele não ligava mais para eles (em ambos os sentidos da palavra), nem seu cabelo, o qual fora rapado quatro vezes nas últimas semanas, nem metade dos móveis da casa, os quais haviam ficado para trás nas andanças pelo estado, nem torcida rerereorganizada, a qual se perdera em algum lugar na Raposo Tavares, nem avós, as quais estavam no hospital depois de tanta confusão, nem tias, que igualmente estavam no hospital por ataque cardíaco e/ou esmagamento, nem tios (o que não fazia qualquer diferença). O cunhado espertalhão, claro, viera e fora e atrapalhara – e continuava lá como um elefante branco. A mãe estava zonza, tentando cuidar de três filhos ao mesmo tempo, já tão acostumada à recém adquirida independência do filho mais velho que não ligava mais para ele. O segundo mais velho já havia ganhado o posto de queridinho da mamãe. O pai estava exausto e com hérnia de disco de tanto levantar peso.
Ou seja, depois de tudo aquilo, ele conseguira a faculdade que queria, mas só havia dado em desastre.
Mas Vestibular é assim mesmo. Um desespero, um caos, um desastre. Pelo menos, ele não teria de fazer mais um ano de cursinho, o que era bom. Mas, também, só isso.
Ah, e a namorada? Estava com o melhor amigo dele, nem se lembrava mais da existência do garoto.
Nota do autor, agosto de 2021: esta é uma crônica engraçada e, como todas, exagerada. Lógico que as coisas não acontecem deste jeito, as listas saem mais ou menos em datas próximas, mas, se você for de uma família muito ansiosa, é bem possível acontecer de ficar pulando de faculdade em faculdade. Não foi o meu caso (rsrsrs)! Só passei na PUC, mesmo.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais