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Como de costume, mais uma vez estávamos eu e o chato… Quando será que eu vou começar a mudar as minhas ideias?
De qualquer forma, estávamos tomando um suco em uma barraca do Salsa & CIA. (não me pergunte de onde saiu esse nome). E, como de costume, vieram os mesmo comentários de sempre…
– Eu quero uma vitamina. Framboesa, Amora, Pêssego, Morango e Kiwi, tudo com leite.
– Como que é isso? – indagou-me meu amigo.
– Como assim, como que é isso? É o meu suco! Pede o seu.
Ele foi para o lado e rapidamente pediu um suco de laranja.
– Sem bagaço, sem gelo. Lava a laranja antes! Ah, e lava a faca antes! Pega a laranja daquela caixa ali! As de cima! As de cima! E este liquidificador aí? Tá limpo?
– Quer largar a mão de ser chato? – falei, inconformado, e ele se aquietou, sentando à mesa.
– Mas e esse seu suco aí? – perguntou mais uma vez meu amigo, na hora que os sucos chegavam (a laranja lavada, escovada, polida e tudo mais a que tinha direito).
– Ai, meu santo Deus!
– O que é essa mistura?
– Quer deixar as minhas misturas, caramba?
– Não faz mal pro estômago?
– Já me viu com dor de estômago?
– Não.
– Então – respondi, tomando meu suco, o qual, por sinal, estava muito bom, obrigado. – Sabe, eu acho que o ponto é a coisa mais expressiva que tem – comecei, após uma pausa.
– Como é?
– Olha, pensa comigo: se você colocasse simplesmente um ponto como o seu nome. O que significaria isso?
– Uma falta de criatividade?
– Não! Olha como o ponto é expressivo: é um círculo perfeito, pequeno, infinito em seu minúsculo mundinho, mas ainda assim insignificante na vastidão que é este universo! Exatamente como nós! Além disso, veja só: se você tiver como nome um ponto, pode-se dizer que você é um ponto na história; o fim de uma coisa e o começo de outra! O que separa os zeros à esquerda dos zeros à direita! Pode-se dizer que não tem nada a comentar sobre si mesmo! É a modéstia em pessoa! A insustentável leveza do nosso ser!
– Realmente… Surreal! – exclamou o outro.
– Não há nada mais expressivo que um ponto!
– É – concordou o chato, sem retrucar. Estava mais interessado em inspecionar seu copo, para ver se estava realmente limpo.
Depois disso, partiu os olhares para o povo ao seu lado.
– O que é aquilo? – perguntou, apontando indignado para um garoto, que viera cumprimentar um outro, apertando-lhe com a mão esquerda a cintura, na barriga.
– Dois homens.
– Não isso! Aliás, isso também, mas o que eles acabaram de fazer!
– Qual o problema?
– O jeito que eles se cumprimentaram! Não está certo! Uma mulher pode fazer isso com outra, um homem pode fazer isso com uma mulher ou vice-versa, mas um homem não faz isso nunca, nunca com outro homem!
– Você quer parar com isso? Você e essas suas regras estúpidas de convivência masculina. Está beirando a homofobia¹…
– São regras essenciais para a boa convivência entre homens! Eu não me conformo com isso! Eu vou falar com eles!
– Deixa os moleques, caramba!
– Eu… Não… Consigo! – monologou, tentando se segurar na cadeira. – Tenho… De ser… Chatoooo!!
– Pára com isso! Vambora!
Puxei o meu singelo amigo chato pelos dois braços e corri para o ponto de ônibus, antes que ele visse algo ainda mais comprometedor. Aguentar o chato não era tarefa para qualquer um, não!
No ponto, o chato analisava os ônibus que passavam, incessantemente.
– Cheio. Cheio. Entupido. Lotado. Abarrotado. Ahn…
– Como um carro de palhaço.
– Bom sinônimo! Velho. Sujo. Caindo aos pedaços. Destruído. Ahn…
– Como as contas públicas no fim do mandato.
– Boa! Cada vez melhor, hem?
– O calhambeque, bi-bi… – cantarolava, enquanto a análise prosseguia.
Por fim, entramos em um ônibus que ele achou bom o suficiente para nos levar. Como de costume, obviamente, tinha todos, absolutamente todos os assentos ocupados, de modo que tivemos de ficar em pé.
– Olha aquilo. Não me conformo com essas coisas.
– Você é um eterno inconformado.
– Tá poético hoje, hem?
– Fazer o quê?
– Mas não, olha aquilo. O velhinho em pé. Puxa vida, tem lugar especial pra velho! E aquele gordão lá fica se refestelando nos dois lugares, enquanto o velhinho fica em pé. Eu vou falar com ele!
– Não, não vai!
Mas já era tarde, o chato estava indo. Entretanto, o ônibus freou para parar no ponto, o meu amigo teve de se segurar com todas as forças para não voar, e um oceano de pessoas, mais parecendo um estouro da manada de hipopótamos Amazonas (acho que não tem hipopótamos lá…) abaixo, irrompeu estrondosamente pelo automóvel público, jogando o meu companheiro de aventuras para junto de mim, de novo.
E o busão avançou, parando de ponto em ponto, nós cada vez mais esmagados, o chato dependurado na cordinha, os braços esticados e na ponta dos pés para tentar alcançar, enquanto eu nem precisava levantar o braço para me segurar.
– Olha isso! – berrou ele, apontando para o ponto, fazendo movimentos com a mão, tentando empurrar as pessoas telecineticamente para fora. – Parem de entrar, parem de entrar! O ônibus tá cheio já! Será que vocês não veem, não? Eu não acredito! Eles não veem que tá cheio?
– Eles veem, mas tem gente que precisa voltar pra casa no final do dia.
– Aliás, tá sempre cheio! Sabe quantas vezes eu consegui voltar para casa sentado? Nenhuma!
– Nem eu.
– E ainda vão aumentar o preço! Pra essa bomba!
O ônibus passou por um buraco e o meu singelo amigo de densidade gigante voou com uma força monumental para o teto, estatelando-se depois no chão.
– Por esse serviço malfeito! Por essa coisa! EU NÃO ME CONFORMOOOO!! – gritou, levantando-se.
As veias saltadas, especialmente aquela do meio, na testa, já passado o vermelho, agora no verde de raiva… Sinal de perigo. Ele estava se transformando no bizarro-Rulque!
– Não faz isso! – berrei, mas já era tarde.
Irritado como nunca, o chato estava urrando e berrando de raiva no meio do automóvel. Por alguma sorte fora do comum, em uma manobra combinada, um trabalhador consciente abriu a janela de emergência, no que o motorista fez uma curva fechada para a direita, todos se segurando firme, e o chato voou para fora, caindo no meio do piscinão do Ipiranga, enquanto berrava de raiva.
Estávamos salvos do bizarro-Rulque!
Pouco depois cheguei em casa, descansei um pouco – ficar com o chato é muito, muito cansativo – e depois parti para procurá-lo. Até agora não o encontrei. Mas, quem sabe, um dia eu o acho. Então, será a volta do incrível chato.
¹Nota do autor, janeiro de 2021: A título de curiosidade, o Chato não é descaradamente homofóbico ou machista, mas ele contém vários traços que estavam (e ainda estão) enrustidos em nossa sociedade daquela época. Assim, aqui e ali eu precisei fazer algumas modificações, para tornar mais politicamente correto. É curioso como isso mudou (acredito eu, para melhor) nas últimas décadas: a discussão sobre homofobia e machismo tem se tornado cada vez mais abertas, e atos que antes considerávamos inocentes mostram cada vez mais estes traços enraizados em nós. Optei, assim por manter estas características do chato, para fomentar a discussão do assunto.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais