A Ferrari
Dizem que os homens ligam apenas para três coisas: cama, mesa e esportes (inclui-se aí a televisão pela qual nós vemos os jogos e os carros esportivos). Também dizem que todos os brasileiros compartilham as mesmas paixões: futebol, praia, carnaval, caipirinha, churrasco, odiar políticos e odiar argentinos. E mais uma vez isso ficou provado para mim…
Estávamos eu e o chato indo para o clube, de busão, aliás, businho, porque era um daqueles pequenininhos, que andam por tudo quanto é canto e passam pelo palhaço – digo, palácio – do governo quando saem do Morumbi e se dirigem para Pinheiros, param fora do ponto e ainda têm rádio para a gente ficar ouvindo – e sempre, sempre, sempre toca a pegadinha do mução (ou seja lá qual for nome; ninguém sabe e nunca vai saber, q nem as meias do (B)Pind(g)a, daquela propaganda do mercado livre¹), e o cara que atendeu xinga adoidado. Eu imagino sempre o que eu faria se o “mução” ou sei lá me ligasse, mas acho que não ficar irritado e tentar irritar o supracitado de nome esquisito não seria levado ao ar, do mesmo jeito que nas videocassetadas do faustão, que só vão as que valem mesmo a pena (e eles repetem todo santo domingo 99% delas), enquanto o chato fica reclamando que o pessoal fica xingando, que é um desrespeito, e depois reclama que colocam a censura, porque estão impedindo a liberdade de expressão…
De um modo ou de outro, quando ele finalmente se aquietou, resolvemos fazer o que todos os brasileiros sabem fazer de melhor: zoar os argentinos.
– Perderam de 4!!! 4 a 1 pro Brasil!!! Toma Argentina!!! – comemoramos (o tema é atrasado mesmo, mas desde o episódio do incrível rulque eu achei melhor esperar um pouco antes de andar de ônibus de novo com ele… E quando finalmente consegui ele destruiu a minha camiseta favorita, então eu fiquei mais de um mês sem falar com ele…).
– E o Tevez! Só se ferra! O Corinthians é horrível mesmo… Pra sair contratando argentino pra jogar! Pelo amor de Deus! – falei.
– Eu acho isso um absurdo! O campeonato é brasileiro, não interamericano… Como que um time brasileiro vai ter respeito, se sai por aí contratando gente de fora? É que nem o Real Madrid, que pega todo mundo que é bom do Brasil… – comentou o chato. – É inconformante.
– E você viu o que os São Paulinos fizeram na Paulista²?
– Vi. Mó mancada.
– Que a gente que paga, de um jeito ou de outro!
– E o escândalo do Mensalão, heim?
– Isso é O absurdo. Com o maiúsculo!
– Quer dizer, os políticos não cansam de tomar o poder e acabar com tudo? Ainda têm de sair roubando?
– E depois o Palocci pega todo o crédito… Por não fazer absolutamente nada! A nossa economia segue o mesmo de antes! É um absurdo!
– Pelo menos alguma coisa nesse governo vai pra frente…
– Pra frente onde? Você viu os indicadores dos outros países? A gente não vai pra frente coisa nenhuma.
– Isso é.
– É um absurdo. O resto do mundo crescendo um monte, e a gente estagnado! Sem fazer nada! Ouvindo pegadinha do Mução, Muzão, Busão ou sei lá o quê! E o cara da Igreja Universal?
– Foi o pior. Fala sério, levar dinheiro na cueca? É a evolução do santo do pau oco…
– Na verdade acho que é o próprio.
– Bem falado. E a venda de cuecas Boquicer aumentou bastante, você viu?
– Também… Inventaram até a Rorba!
– É… Se tem uma coisa que a gente sabe fazer é rir para não chorar…
– E acaba chorando de tanto rir depois, o que dá na mesma… Eu não me conformo…
– Eu não me conformo e inconformante eram palavras minhas! Pode parar de usar ou pagar róiautis!
– As palavras são da língua brasileira e eu posso usar elas quando eu quiser e como eu quiser!
– Pelo menos por isso ainda não cobram…
– E aposto como o Lula tava envolvido. Tenho certeza!
– E a história de impitchiment? Aposto como não vai pra frente³…
– É um absurdo!
– Tá, mas vamos falar de algo menos chato… Já tô por aqui de ouvir essas histórias de mensalão e tudo mais… Não param de falar disso!
– Um absurdo.
– Não sei como a nossa economia ainda não quebrou…
– Somos uma terra abençoada por Deus e corrupta por natureza, é o que eu digo…
Nisso todo mundo dentro do ônibus fica quieto, aquele silêncio total de cemitério à meia-noite de ano novo, só o chato falando (para variar), quebrando aquela contemplação; eu vejo um ponto vermelho pelo canto do olho, viro o rosto e…
– Meu Deus! Uma Ferrari!!
– Quê?
– Uma Ferrari! Olha ali atrás! O carro vermelho! O símbolo amarelo!!
– Como você pode saber que é uma Ferrari? O símbolo é minúsculo!
– O carro é vermelho, tem um símbolo amarelo e preto… E dá pra sentir o cheiro! O barulho! Não tem dúvida, é uma Ferrari! Olha só pra ela!
– Não sei não..
– Ei, motorista! – berrei. – Diminui! Diminui! Deixa a Ferrari passar!
Estávamos passando pela ponte Cidade Jardim, fazendo a curva para entrar na Marginal, e a Ferrari atrás de nós, aquele silêncio tumular dentro do businho, até o rádio parecia em silêncio para reverenciar. Todo mundo atrás diminui para olhar o carro, o ônibus diminuiu, deu passagem… E a Ferrari passou pelo nosso lado! Deu até pra ver o cavalinho!
– Falei! É uma Ferrari!!! Eu vi uma Ferrari na rua!!! Não foi na loja, foi na rua!!! – soquei o chato.
Mas nem ele tinha palavras; a única coisa que podia calar uma matraca, contanto que fosse um homem, era uma Ferrari bem na frente.
O motorista babava, o cobrador também. Metade do contingente dentro do businho virava o rosto pra olhar; a outra metade, que era de mulheres apenas, virava o rosto para tentar entender o que os homens viam naquele maldito aparelho. E a Ferrari ia, magnânima, pela rua, rua não, Marginal, a vinte km/h… Um velhote dirigia ela, se exibindo como nunca, e o pessoal todo diminuía para olhar antes de avançar pelo lado… Ele parava metade da Marginal atrás de si, mas ninguém tinha cara de buzinar; todo mundo ia em silêncio, em contemplação, passando não mais que dez km/h em volta, pelo lado, indo embora para que outro pudesse ocupar o lugar e olhar…
O ônibus seguiu o cortejo do lado, e a gente ficou encarando o carro, cada detalhezinho, e apenas no décimo toque, quando a mulher já estava quase berrando, o motorista lembrou de parar no ponto e parou de sonhar acordado para deixá-la, quase derrubando a guia só para poder continuar olhando.
Se havia algo que podia fazer todo mundo parar de discutir política e coisa e tal, era uma Ferrari.
Quando ela passou, olhamos a placa: DF – Brasília.
– É de Brasília!! – berrei. – Político maldito! Comprou uma Ferrari com o nosso dinheiro!! Aposto como é do mensalão!
– Que absurdo!!
– Tava dando problema lá em Brasília e resolveu espairecer por aqui! Maldito!!
E com isso o ônibus inteiro voltou a discutir política, reclamando do mensalão e da roubalheira no governo.
Se havia uma coisa que podia fazer todo mundo voltar a discutir política, era um carro caro com placa de Brasília.
¹Para vocês verem como isso é antigo, eu nem sei se essa pegadinha ainda existe, e até hoje eu não tenho certeza se era este mesmo o nome do cidadão.
²Na época, em alguma manifestação após derrota, os São Paulinos tinham depredado a avenida Paulista.
³Como você pode ver, impitchiment era um tema recorrente já desde o início das denúncias de corrupção.

O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais