Ainda sobre o Chato e Marla
Desde a última conversa que eu tive com o chato, não tive muitas oportunidades de falar com ele; estávamos ambos ocupados, eu com a escola e aquela imbecilidade que chamam de vestibular, o qual só serve para atrapalhar a nossa vida, e o chato com… Seja lá o que for que ele faz. De um modo ou de outro, um dia tornamos a nos encontrar no meu clube e tratamos de pôr o assunto em dia em caminho para o restaurante (eu havia nadado, e o chato havia… Sei lá… Feito não sei o que trancado na sauna com mais dez homens).
– E você acredita que a gente tem de pagar pra usar a sauna?
– Ué, eles tem de fazer a manutenção, né…
– Mas a gente paga a mensalidade! A mensalidade deveria pagar a manutenção da sauna!
– Na verdade, a mensalidade paga a manutenção do clube em geral, do cinema, da biblioteca, dos teatros, das piscinas e tudo mais. As outras atividades têm de ser pagas, né, senão ia ficar caro demais pra todos nós.
– É um absurdo! Uma discriminação! Quer dizer que os pobres não podem usar a sauna, é?
– O que um pobre estaria fazendo aqui no clube, em primeiro lugar? Ele não teria de pagar a mensalidade?
– Mesmo assim, eu acho isso um A-bi-ssur-dô, com A maiúsculo!
– Ou com A másculo, já que era a sauna masculina – comentei eu, antes de adicionar uma risada idiota, em uma piada tão fraca que chegou a me doer por duas semanas no coração.
Por incrível que pareça, no entanto, o chato riu (algo com o que eu não me conformei), e nós subimos a escada para o restaurante.
O chato pode não ter reparado, mas logo que chegamos, um grupo de garçons se juntou, boquiaberto, os olhos arregalados, as bandejas quase derrubando tudo; eles não suportavam quando o chato aparecia. Ainda sem que ele percebesse, conforme nos sentávamos, os três correram para algum lugar e empurraram um outro garçom à frente, escondendo-se em seguida.
– Olá vocês! O que vão querer? – perguntou, tão sorridente que era quase… Radiante.
Eu olhei para a cara daquele pobre garçom de sacrifício, uma cara meio de criança, e simplesmente não tinha como conter um sorriso; era Roberto, o garçom meio budista, meio evangélico, bonzinho com todo o mundo e o único que podia aguentar o chato.
– Eu vou pegar o rodízio… E um suco de laranja – respondi, enquanto o chato olhava o cardápio.
– Qual é o prato do dia?
– Spaghetti com almôndegas no molho à bolonhesa.
– Não, não… O molho me dá azia. E como está este rocambole de carne aqui?
– Ótimo – respondeu o outro, calmamente.
– Ah, não, rocambole de carne não… E que tal o filé de frango com…
Deixando isso de lado, vendo que ia levar horas, eu me levantei para pegar a comida, olhando por cima do ombro para a mesa.
No tempo em que eu peguei a salada, comi ela inteira, bebi meio suco e ainda peguei o meu prato quente, o chato ainda estava perguntando pela segunda vez todos os pratos do cardápio.
– Mas 9,90 por um filé de frango é um absurdo!¹ – exclamou.
– É um delicioso filé de frango com molho de laranja, arroz com lentilha, batatas a dorê e…
– Mas 9,90 é um absurdo! – prosseguiu, inexorável, e teria ido ainda mais longe se não tivesse visto algo com o canto do olho.
Tentando não fazer barulho, eu empurrei minha cadeira um pouco mais para o lado, fugindo dele. Roberto, porém, simplesmente sorriu, enquanto o chato se contorcia em uma carranca de ódio.
– Ora, ora, vejam só. Será que agora, além de baixo, cego, careca e chato, você não tem mais dinheiro, é?
Era o rabugento… E os encontros entre os dois não são nem um pouco agradáveis. Empurrei a cadeira um pouco mais para o lado.
O chato realmente chegou a ranger os dentes, entregando o cardápio de volta para o Roberto.
– Pode me trazer o prato mais caro do dia. E, para beber, um Dom Perrinhom.
– Nós não servimos bebidas alcoólicas aqui, senhor…
– Então pode me trazer a bebida mais cara que você tiver. E traga mais uma para o meu amigo aqui. Afinal de contas, hoje é dia de comemoração!
Eu estava tão absorto imaginando como que o meu suposto “amigo” ia pagar tudo aquilo (e já imaginando que eu ia acabar pagando por tudo), que só percebi a palavra comemoração de todo o discurso (como é costume meu, só ouço as últimas palavras do que o chato fala – ei, não olhem para mim assim, todo o resto do mundo (tirando o Roberto) sequer ouve o que ele fala).
– Ah é? E qual seria o motivo da comemoração? Caíram só dois fios de cabelo hoje, é? Ou será que lançaram uma nova cera para carecas?
– Nenhum dos dois. E não se preocupa, eu te aviso quando lançarem. E ainda te mando uma caixa de tintura para o cabelo, aí você pode se livrar desse tapete de neve aí em cima. Aliás, isso é cabelo ou caspa?
Os dois trocaram olhares de profundo ódio, no que Roberto saía rapidamente para fazer o pedido e eu tentava engolir a comida para fugir dali o mais rápido possível.
– De um modo ou de outro, o motivo da comemoração, senhora e senhor, é que eu estou noivo.
Suco de laranja voou por todos os lados; o rabugento literalmente rolou no chão de tanto rir, e acabou se espatifando lá embaixo, ainda gargalhando. Enquanto eu tentava limpar a sujeira que eu fizera (porque o maldito tinha de contar isso quando eu estava bebendo) e trocava por um prato novo, via o chato mudar do vermelho para o roxo. Tudo bem. Enquanto não estivesse verde, estaria tudo bem.
– Agora, será que dá para me explicar esta história direito? – disse, quando já havia conseguido conter o desastre.
Sua cor regrediu a um rosa mais suportável, conforme ele se afundava em goles do milquicheique.
– Lembra que você falou que era um relacionamento perfeito…
– Ah, não! – respondi imediatamente, metendo a testa nas mãos. E, com o perdão da palavra, disse: – Me diz que você não fez essa merda!
– O quê?
– Você não pediu a… Marla… Em casamento… Não é?
– Pedi, sim. Você disse que o relacionamento era perfeito!
– Sim! E para que estragar uma coisa perfeita?
– Ahm?
– Olha aqui… Tá vendo a colher? Esta é a Marla antes de se casar. Ela é legal, ótima, você pode usar ela para tudo, não reclama de nada, tá vendo? Ela reflete os problemas para longe. Ela é redonda, não tem pontas, ou seja, ela é legal. Todo mundo adora a colher. Agora, esta é a Marla depois de se casar: uma faca. Ela tem ponta, e ela não vai perder uma oportunidade de te cortar. Tá me entendendo?
– Não – respondeu, simplesmente.
– Olhaqui. Antes ela concordava com tudo que você dizia, acho que com medo de perder você (embora eu não veja nenhum motivo para isso…), ou sei lá o quê, mas agora… Agora ela vai parar de achar que pode mandar em você e vai MANDAR em você. Agora acabou a sua vida social. Você vai estar eternamente preso a uma mulher chata, que só reclama o dia inteiro de ficar em casa cuidando dos filhos, ou de lavar a louça, ou do trabalho, ou da academia, ou do amante, ou da melhor amiga, ou da mãe, ou da pérola que você comprou pra ela, ou da (com o perdão da palavra, caro leitor) porra do papagaio da tia da prima do vizinho de segundo grau daquele esquimó em Tagatinguetá! Você não vai mais poder ver jogos de futebol com os amigos, não vai mais poder sair sem ela, tomar cerveja, não vai poder ficar fora de casa até tarde…
– Mas com a Marla não vai ser assim!
– Com todas elas é assim, meu caro e futuramente finado amigo. Com todas elas. Casamentos mudam as pessoas. A sua vida acaba a partir do momento que você se casa. A partir daí, você não é mais você, você passa a ser um apêndice dela, que ela pode usar para absolutamente tudo que ela – e somente ela – quiser.
– Mas…
– Pensa nos seus pais.
Conforme ele pensava, um olhar tão desalentador que chegou a me dar dó caiu em seus olhos.
– Meu Deus! O que foi que eu fiz? O que eu faço? – ele pulou por cima da mesa, derrubando tudo no chão, me pegou pelo pescoço e gritou, desesperado. – O que eu faço? Me diz!! Me diz!!!
– Tenta atrasar o casamento – respondi, com uma voz que mais parecia o pato Donald. – Para quando você marcou?
– 25 de Maio.
– Atrasa. Fala que você não gosta do inverno. Ou outono. Ou sei lá que estação que é! Fala que é dia de mau agouro. Sei lá. Inventa qualquer coisa. Quebra o pé no dia do casamento. Não sei. Mas corre! Corre e salva a sua vida enquanto você pode!
O chato, então, me olhou com uma determinação que eu nunca vi igual, e correu escada abaixo para fora do clube, berrando: “Saiam da frente, eu preciso salvar a minha vida!”.
E eu estava me levantando, rindo da situação absurda em que estava, quando Roberto apareceu do meu lado, fazendo aquele “Caham!” de quem quer chamar atenção, mas não muita.
– A conta – disse, estendendo-me uma cadernetinha de couro.
– Ah, não, de novo? – suspirei. Sempre sobra para mim…
Nota do autor, abril de 2021: gostaria de fazer notar que eu escrevi a grande maioria das crônicas do chato quando eu tinha entre 16 e 17 anos. Ou seja, meu conhecimento de relacionamentos restringia-se a… Nada. Basicamente, o que mostravam na televisão e, especialmente, estereótipos.
Mas, de qualquer forma, eu não esperaria que a mulher do chato fosse muito diferente dele. Afinal, os chatos se atraem, não?
¹ Não preciso nem dizer o que o chato tem a dizer sobre a inflação desde então…
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais