Chatices (agora até mesmo online!)
– Eu preciso da sua ajuda!
– AIMEUDEUS! Cê tá vivo ainda?
– Lógico que tô! De onde você tirou que eu não tava?
– Eu te joguei de um carro em alta velocidade… Como você não morre?
– Eu quiquei no chão com a minha barriga e caí em cima de um arbusto… – respondeu o chato, com a maior normalidade do mundo.
– Mas como você descobriu onde eu moro?
– Segui você. Não é difícil. Você corre, ehm!
– Ai meu Deus…
– E não dá mais a seta…
– É o único jeito de sobreviver em Sorocaba…
– E cruza o farol¹…
– O que demônios cê tá fazendo aqui? – cortei, antes que os leitores pensassem que eu sou o maior barbeiro (o que é mentira!!!).
– Então, eu preciso da sua ajuda.
– Por quê?
– Eu conheci uma mulher online…
– E a Marla?!?!?! – triplinterroxclamei.
– Que Marla?
– A noiva que você largou no altar em 25 de maio, depois de tanto sofrimento!
– Ah, sim… Ainda não falei com ela. Acho que vou mandar um cartão postal de Timbuctu.
– Timbuctu existe de verdade?
– Não sei, mas eventualmente descubro.
Suspirei.
– Tá, e daí, você conheceu uma mulher na internet…
– E preciso da sua ajuda! Combinamos de sair, mas ela acha que eu sou alto, magro, tenho 20 e poucos anos, sou relativamente bonito, moro sozinho, falo quatro línguas, estudo medicina, estou fazendo um curso de acupuntura por fora, abri uma liga de psiquiatria e vou ser indicado como vice-presi…
– Por quanto tempo você ficou me seguindo?
– Alguns meses.
– Aimeudeus.
– Mesmo assim, me ajude! Eu não posso ir lá encontrar com ela, vai tudo acabar antes mesmo de começar! E estávamos tão bem!
– Você sabe que ela vai eventualmente ter de te ver, né?
– Ah, mas até lá, eu consigo mudar… Se você conseguiu isso em menos de um ano, eu posso conseguir em três meses.
Desembestei a gargalhar. O chato emagrecer? Era o mesmo que pedir para uma baleia virar um peixe espada!
– Não vai dar certo. Além do mais, ela já não viu sua foto?
– Meu Orkut não tem foto.
– Por quê? É tão feio que recusaram?
– Não… É que as únicas fotos que conseguem me enquadrar precisam ser tiradas a uns vinte metros de distância e eu sempre fico pequeno demais. E não dá pra dar zum no rosto…
Balancei a cabeça, inconformado.
– E eu não posso fazer isso! Tenho namorada!
– Você não vai fazer nada! E é só tirar esse grilhão de prata aí do dedo!
– Não é aliança, é só um anel… – suspirei, cansado de explicar isso para todo mundo. Também, por que justo eu tenho de ser do contra?
O chato começou a desesperar.
– Vai lá e conversa com ela por mim! Só isso! Aí podemos descobrir como ela é de verdade e se realmente vale a pena eu mudar por ela!
– Contanto que você não caia na besteira de pedir ela em casamento de novo…
– Quer dizer que você vai ajudar?
– Só porque eu tenho dó de você…
– Oba! Então, se arrume!
– Por quê? Não me diz que…
– Eu marquei pras sete e meia, e são sete e quinze já.
– AIMEUDEUS!
– Eu vou te contando sobre ela enquanto você se arruma…
Em questão de segundos, corri, tomei banho, me vesti, escovei os dentes, arrumei o cabelo do melhor jeito que pude (o que o fez parecer um ninho de pássaro em limpeza de primavera), e, magicamente, às 19h22, estava na frente da porta, pegando a chave do carro (o que demorou mais foi o cabelo, não preciso nem dizer). Enquanto isso, o chato havia tentado me contar dezenas de coisas, mas acabei tão entretido expulsando ele do banheiro para que eu pudesse, pelo menos, tomar banho sozinho, que nem prestei atenção.
– Para onde vamos?
– Pro Aspásia.
– Mas tá chique, você, ehm?
– Quem vai pagar é você…
– Desde quando?! – interroxclamei. Não caía mais nessa. – Estou te fazendo um favor e eu ainda tenho de pagar??
– Mas quem vai comer é você!
– E posso muito bem comer em casa! Ainda tenho pizza congelada deles! Se é assim, não vou!
– Tá bom, tá bom! Eu pago!
– É bom mesmo. Não tenho mais dinheiro na conta para ficar bancando suas estripulias…
– Estripulias? De que século você veio?
– Não importa. Agora vai, me conta logo sobre ela pra eu não ficar tão perdido.
Ele até tentou, mas na verdade estava tão obcecado com a foto dela de modelo que acabou não me contando nada, apenas ficou descrevendo tamanho do busto, cintura, quadril…
Conclusão, cheguei ao restaurante ainda sem saber como era ela e tentando descobrir de onde ele tirava aquelas pessoas.
– Ela vai estar com um vestido vermelho… Acho que não tem erro…
Obviamente tinha umas dez pessoas com vestido vermelho no restaurante!
– Tá, e ela é loira.
Diminuímos de 10 para 8.
– De olhos verdes.
Diminuímos de 8 para 8.
– Ah, sei lá!
Decidido de que, se ela era uma modelo, deveria ter, pelo menos, metade do restaurante a secando, olhei uma por uma das pessoas de vermelho, até chegar à conclusão de que devia ser a moça do canto, na janela, de olho para a rua, provavelmente esperando o chato chegar. E o fato de quase todos os garçons se aglomerarem lá para tentar servi-la já servia de descrição suficiente com relação à sua beleza.
Como ele consegue essas coisas??? O que raios ele conversa que consegue, de alguma forma, suprimir a sua chatice???
Criei coragem – nunca fui bom para essas coisas –, entrei no restaurante e, ao ser atendido por um garçom, falei que estava lá para encontrar uma Nicole Reservoir La Tour (me senti o James Bond falando), e ele, certamente pensando Sortudo desgraçado, o que ela viu nesse cara?, levou-me para a mesa do canto, onde estava a mulher que havia citado.
O chato se postou atrás dela, do outro lado da janela, do lado de fora do restaurante, olhando para mim e sinalizando o que eu devia falar (e como eu sempre fui horrível de leitura labial, nem queira saber as coisas grotescas que eu entendia).
– Oi, eu sou… – (Qual o nome do chato??? Qual o nome do chato???) – o cara da internet.
– Nicole – respondeu ela, elegantemente estendendo a mão, e, tentando fazer bonito para o chato, beijei o seu dorso.
Começamos a conversar, inicialmente devagar, mas depois fomos engrenando. Fizemos o pedido e, enquanto os garçons aprontavam tudo, corroendo-se de raiva, aproveitei para tentar descobrir as informações sobre ela.
– Então, o que você faz, mesmo?
– Mas já esqueceu?
– Ah, é que eu queria ouvir ao vivo – contornei. – Sabe como é, sabe-se lá o que as pessoas podem escrever na internet… – comentei, lançando um olhar irritado para o chato, que estava pulando do lado de fora pedindo para que eu descobrisse a cor do coelho da vizinha dela (?).
– Então você acha que eu sou mentirosa?
Saí do meu transe de desentendimento e, como minha solução para tudo, sorri.
– Não, não, era brincadeira…
E aí ela começou sua história. Nascera em Paris, mas se mudara para a Rússia com nove anos, e se tornara líder do movimento revolucionário Nudez contra o aquecimento global (aos 15, não aos nove!). Aparentemente tinha muitos adeptos dispostos a segui-la, mas não a ficar pelados do seu lado, e como sempre estava frio por lá, ela decidiu vir fazer seu protesto no Brasil, onde era mais quente, e onde, pelo jeito, todo mundo adorava ficar pelado.
(Como, por sinal, uma mulher de uns 40 anos, que resolveu ter um surto psicótico do lado de fora do restaurante, arrancar a roupa, ficando só de roupas de baixo, e partir para o ataque contra uma outra mulher, sabe-se lá por quê. Com isso, todos os garçons se aglomeraram na nossa mesa, tentando ao mesmo tempo ver o que acontecia lá fora e babar sobre a revolucionária nudista diante de mim).
Para conseguir dinheiro para o seu movimento, Nicole havia posado para dezenas de revistas, entre elas até mesmo a Pleiboi. Mas o fato era que havia juntado tanto dinheiro que havia resolvido comprar parte das ações do Vale do Rio Doce, e agora era milionária, investindo 50% da sua renda anual na compra de medicamentos contra AIDS para a África. Sua idade era um mistério.
(De onde o chato tira essas pessoas?)
Foi a vez de eu contar sobre mim, conforme comíamos a pizza. Aproveitei para encher a bola do chato e contar sobre tudo que conseguia lembrar de útil sobre mim, por mais irrelevante que fosse.
(Por favor, não pensem que sou arrogante ou convencido. O fato é que, leitor, qualquer um que fosse teria mais coisas relevantes ou importantes na vida que o chato. Ou seja, por pior que eu fosse, eu ainda assim seria melhor que o chato. Logo, não importava o que eu falasse, estaria enchendo a sua bola).
Porém, conforme eu ia falando, a expressão no rosto dela parecia murchar, e eu ia tentando falar mais e mais coisas, até um ponto em que ela parecia extremamente impaciente para que tudo acabasse logo, e eu desisti.
– O que acontece?
– Você é exatamente como se descreveu no Orkut.
– É – respondi, inocentemente.
– Ou seja, você é um chato!
– Ahm?
– Não quero alguém com dezenas de formações! Algum trabalhador bem sucedido, médico, advogado, arquiteto ou seja lá o que for! Estou cansada de todos eles. Por uma vez, queria alguém folgado, que morasse com os pais, mal falasse português, não fizesse faculdade, tivesse ido mal na escola, fosse gordo, baixinho, meio careca, perto da meia idade…
Meu Deus, ela tá apaixonada pelo Chato!!!
– Então, acho que não podemos continuar com isso – disse ela, levantando-se. – Foi uma noite muito agradável, mas eu sinto muito.
Ela me cumprimentou friamente e saiu da mesa; enquanto isso, os garçons pulavam de alegria, e eu fiquei com cara de bunda, sem entender nada. O que fora aquilo?
Do outro lado, o chato teve um surto de desespero, e caiu à frente dela, no meio do caminho, quase gritando.
– Sou eu! Eu sou o cara chato! Eu sou gordo, baixinho, quase careca, quase de meia idade! Não sou formado sequer no colegial! Continuo errando conjugação verbal! E já estou tão bem acomodado morando com os meus pais que eles têm de ir prum motel uma vez por mês!
Eu não precisava ter ouvido aquilo.
Algo no olhar da modelo, porém, mudou, e ela estendeu seu braço (que ficava à altura da cabeça do chato) para que ele o acompanhasse.
– Ah, é? Conte-me mais sobre você.
– Bem, meu nome é…
– A conta, senhor – disse um garçom, depositando uma carteira preta à minha frente, extremamente inconformado porque a modelo havia pegado um cara ainda pior do que eu.
Olhei para a conta. Ah, meu pai ainda vai me matar um dia desses…
E ela não havia deixado nem mesmo um pedaço de pizza para que eu levasse para casa e congelasse para comer depois.
– Posso pelo menos ganhar um café por conta da casa? – suspirei.
Nota do autor, setembro de 2021: lendo esta crônica 14 anos depois de tê-la escrita, devo dizer que fiquei surpreso com a reviravolta! Rsrsrsrs Ah, esse Chato… Como consegue?
¹ (Nota de 2021) A título de curiosidade, Sorocaba tem algumas peculiaridades no trânsito. Primeiro: nunca ninguém dá a seta. Segundo: a faixa da direita geralmente anda mais rápido que a da esquerda. Terceiro: uma vez que o farol fechou, é de comum acordo que você ainda pode passar por 5 segundos, porque é o tempo que o pessoal que estava esperando para cruzar no verde leva para sair. Quem veio primeiro? Não sei. Mas é assim que funciona, lá.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais