Chatices de Umenoventenovi
Um dia, não sei por qual motivo estranho, eu fui com o chato a uma loja de um e noventa e nove, daquelas que tudo sai por apenas um centavo a menos que dois, contanto que não possua uma etiqueta indicando um preço diferente.
Entramos na lojinha, totalmente abarrotada de coisas vindas do Paraguai, incluindo até mesmo artigos de perfumaria, ferramentas, comida, artigos de decoração, brinquedos… É impressionante a quantidade de badulaques que uma pessoa, com bastante disposição, consegue entochar em algumas prateleiras…
Por fim, o chato pegou um bagulho na mão – bagulho por falta de palavra melhor – e, depois de girar para todos os lados e olhar por todos os ângulos, mostrando para mim, chegou à conclusão de que não tinha a menor ideia de para que servia. Eram duas placas de plástico vermelhas presas em um ângulo de uns 120 graus entre si por duas barras abaixo e uma acima (se você não entendeu a descrição, não tem problema, aquele negócio era meio indefinido e completamente indescritível mesmo). E, claro, como toque final, havia uma marca de “O boticário”, o que aumentava ainda mais a dúvida.
– Praque demônios serve essa droga afinal de contas?
– Não sei. Parece um suporte de Bitibóus.
– Não sei… Quantas vezes na vida você já viu uma dessas?
– Várias. Toda vez que eu via Doug eu via uma dessas.
– Ei, moço – perguntou o chato para o cara atrás do balcão. – O que é isso?
– Ââhh… Num sei – respondeu o outro, simplesmente, como o grande Carlos Casagrande.
– Como que você não sabe?
– Si você discubri, mi avisá, tá?
– Como que você não sabe? Você é o dono da loja! Você deveria saber pra que servem as coisas que você tá vendendo!
– Ââhh… Num sei!
– Pelamordedeus! Pra que serve essa droga?
– Deixa de lado… – falei eu, olhando para as outras coisas ao redor.
– Não! Eu quero saber pra que servem os produtos que eu quero comprar!
– Você realmente vai comprar isso?
– Não, mas mesmo assim, é o princípio de saber o que…
Simplesmente ignorei os próximos minutos de reclamação, até que ele cansasse.
– Então, eu tenho umas coisas pra te perguntar…
– O quê?
– Primeiro, como que você voltou pra cá depois de todo aquele incidente com o Sorocongue? E como você virou o Sorocongue??
– Eu não sei como eu virei o Sorocongue. É que nem os super-sayajins, sabe? Eu virei do nada… E foi fácil voltar pra cá. Você não viu as notícias? Que o macacão sumiu do nada? Quando eu voltei ao normal, eu simplesmente atravessei por entre as barras, que eram enormes, e pedi carona pra São Paulo. Nada muito difícil. A pior parte foi acordar sem roupas, claro, mas até aí… O pessoal duma loja ficou feliz em me dar roupas pra esconder as minhas “propriedades”…
– Af, que nojo! Não me fala disso! Pode omitir essa parte!
Ele me lançou uma verdadeira cara de bunda com isso.
– Agora, e a Marla? Ela ainda fala com você, depois de tudo aquilo?
– Fala? Se ela fala? Ela não quer me largar!
– Como? – respondi, sem acreditar.
– Agora ela acha que vai conseguir me ajudar a nunca mais me transformar naquele bicho, então ela quer me ajudar a ficar calmo e tudo mais, por isso ela fica atrás de mim o dia todo pra tentar…
– Mas, como assim? O que raios vocês fazem a portas fechadas…
– Nada, absolutamente nada! O máximo que eu fiz até hoje foi assistir a Marry Poppins enquanto comia pipoca no sofá com ela!
Deve ser isso. Era a ignorância do que a esperava… Pobre Marla.
– Meu Deus, como alguém pode ser tão doente a ponto de realmente querer casar com você? Mesmo depois de tudo que aconteceu? – prossegui.
– Eu não sei. Ela é doida!
– Vocês dois são doidos!
– Ei, eu não… Ei, olha só! – exclamou ele, animado, trocando completamente de assunto ao ver um peixe espada de plástico que dançava e cantava. – Esse peixe custa só um e noventa e nove!
– Como que pode?
– Não sei, mas não tem etiqueta! Custa só um e noventa e nove!
– Mas não pode ser. Alguém tem de ter esquecido a etiqueta ou coisa assim.
– Mas custa umenoventenove!
– Mas não tem etiqueta! Quero dizer, alguém deve ter esquecido de…
– Umenoventenove! Eu sempre quis ter um peixe desses!
E, com isso, ele literalmente voou para o caixa, deixando até mesmo aquela fumacinha atrás de si. No entanto, na hora em que o dono viu a peça e procurou pelo preço, não o achando, apertou uma campainha.
– Cláudia, checa pra mim o preço du peixe dançarino?
Uma forma de patins voou por entre os corredores e berrou: “299,99!”.
– São duzentus e noventenovi e noventenovi.
– Não, não, espera aí. Aqui tem uma plaquinha dizendo que quando não tem preço custa só umenoventenove. Então, eu só quero pagar umenoventenove.
– Não, esse peixe custa dunzentusenoventenovienoventenovi. Meus funcionárius só qui esqueceram di colocá o preçu. Mais ele custa…
– Não quero nem saber. Se os seus funcionários esqueceram de colocar o preço, o problema é deles. Esse peixe não tem etiqueta, logo custa umenoventenovi, e eu só vou pagar umenoventenovi!
– Mas o peixe custa…
– A lei do consumidor diz que o preço mais baixo prevalece!
– Então eu num quero mais fazer negócius com você! Pode sair daqui!
– Como assim?
– É meu direito não querer fazer negócius com quem eu não quiser! E eu num queru fazer negócius com você! Cai fora daqui, seu chato de galochas!
Eu não acreditei no que eu vi; em questão de segundos, o chato estava sendo arremessado pelo dono da loja para fora. Não que eu não tenha acreditado porque o chato havia sido posto pra fora da loja; isso já tinha acontecido dezenas de vezes com ele (e eu tenho inúmeras fotos das cenas). O mais impressionante, foi, na verdade, ver um homenzinho daqueles – porque o dono da loja era um japonês um pouquinho mais alto que o chato só, magrelo feito um palito e aparentemente tão frágil quanto uma boneca de porcelana em um terremoto – conseguir levantar o tamanho peso do chato e ainda arremessá-lo a uma distância de uns três metros na calçada.
O fato é que foi realmente tão impressionante, mas tão impressionante (como ver um graveto sustentando um buraco negro aberto – eu quero só ver alguém vendo essa cena!) que o próprio chato ficou em estado de choque. Seus olhos vidraram e ele ficou olhando com cara de tonho para o nada.
– Ele me arremessou… Ele me arremessou… – murmurava, inconformado.
Eu também estava inconformado, mas levei o chato até o café ao lado, onde passava, curiosamente, Mary Poppins na televisão. O choque da lembrança foi tão forte que, em questão de segundos, ele saiu de seu estupor e, desesperado, achando que estava mais uma vez comendo pipoca na cama com a Marla, saiu correndo do café, gritando, desesperado, que não conseguia achar as calças.
É coisa demais para uma cabeça só… Coitado…
Nota do autor, setembro de 2021: Quem de vocês nunca achou algo sem preço em uma loja de 1,99, que claramente não custava isso, e foi tentar dar uma de espertinho? Bom, eu sei de gente que arranca etiquetas para tentar isso (minha esposa tem uma loja, as pessoas vivem fazendo isso, lá), então…
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais