Chatices no Farol
Estava andando de carro com o Chato (não, não me pergunte por quê. Tinha vezes em que ele simplesmente aparecia para me encher o saco), que estava encantado com a possibilidade de andar em um carro blindado.
– Cara, isso é demais! – exclamou ele, fuçando em absolutamente tudo.
– Dá pra não apertar todos os botões?
– Que bom que você finalmente saiu daquela geringonça, sério. Parecia um carrinho de autorama.
Antigamente, eu tinha um Kwid. Ele era tão apertado, que, quando o Chato se sentava no banco do passageiro, ele meio que escorria para o lado. Mais de uma vez os seus pneuzinhos abaixaram o freio de mão ou mudaram de marcha por mim. Sem mencionar que o carro ficava perigosamente baixo na dianteira direita e eu tinha de dirigir o tempo todo compensando com o volante. Enfim, não era uma situação agradável.
– Por que você finalmente decidiu trocar?
– Eu preciso explicar minha vida toda pra você?
– Mal não faria.
– Simplesmente se conforme que eu troquei. Dois por um.
– Graças a Deus… – ele disse. Na sequência, pegou o celular. – Olha que legal! Olha que legal! Eu posso usar o que eu quiser, sem ter medo! Eu posso usar um notebook, se eu quiser! Ninguém vai apontar uma arma e me assaltar!
Eu revirei os olhos.
– Você também não precisa ficar dando bandeira, aqui é São Paulo.
– Ah, cara, mas isso é demais. Ei, você pode simplesmente abalroar os carros que estiverem no meio do caminho?
– Abalroar?
– Estava numa livraria hoje cedo.
Revirei os olhos de novo. Eu faço isso muito quando estou perto dele.
– Não, não dá. Isso aqui é um carro, não um tanque de guerra. Vai amassar da mesma forma.
– Que lixo. Aguenta bala, mas não aguenta uma batidinha.
Eu revirei os… Ah, quer saber, apenas imagine que, depois de cada comentário bizarro do Chato, eu revirei os olhos. Isso vai me economizar meia página da mesma frase.
Finalmente, paramos no farol ao fim da Raposo Tavares; um dos vários homens que ficam lá à espreita para limpar os vidros se aproximou. Eu tinha acabado de lavar o vidro do meu carro no posto e agradeci, recusando, mas o homem continuou, desenhando um coração e juntando as mãos, como se pedisse por favor, antes de começar a limpar.
– Eu odeio quando eles fazem isso – disse o Chato.
– Ele está tentando ganhar algum dinheiro…
– Mas você falou que não queria! Por que não foi limpar o carro de outra pessoa?
– Sei lá, às vezes eles acham que a chance é maior de receber dinheiro de um carro grande. Quem iria querer pedir grana prum Kwid?
– Afe, agora ele fica aqui, do lado, olhando com essa cara de pidão…
– Deixa eu ver se eu tenho uma moeda…
– Não! – exclamou o Chato, segurando minha mão. – É um truque! Um truque para você abrir a janela!
– Como é?
– Toda a segurança do seu carro depende de você nunca, jamais, em hipótese alguma, abrir a sua janela!
– Sério, cara, relaxa, é só um limpador de…
– Daí ele joga ácido na sua cara e, quando você vê, está em um cativeiro no meio de Carapicuíba!
– Não seja ridículo!
– Fora que, ninguém merece! Por que você tem de pagar por algo que você não quer? Quer dizer, você pediu para ele limpar o vidro? Não! Você insistiu para ele não limpar e, mesmo assim, mesmo sabendo que você não queria e, portanto, não tinha por que pagar, ele foi lá e limpou. Isso é tipo extorsão.
– Eu não sei se esse é o termo correto para…
Logo atrás, alguém buzinou; o farol estava aberto, e a gente estava discutindo à toa, porque o homem já tinha ido embora.
– Passa por cima, seu idiota! – exclamou o Chato, mas, sem poder abrir a janela, não teve a menor graça. O outro provavelmente não ouviu.
Seguimos adiante, o Chato ainda inconformado.
– Isso me lembra de outra coisa que eu detesto.
– A educação? – perguntei, ironicamente.
– O quê? Não, eu gosto da educação, faça-me o favor – ele respondeu, com desprezo. – Estou pensando em gorjeta.
– Gorjeta?
– Sim. Sabe, quando você vai para um hotel? Que você precisa dar a gorjeta pro cara que carrega suas malas? Ou, então, outro dia, que você foi num lugar, e o manobrista pediu gorjeta só por pegar o seu carro…
– Como você sabe disso?
– Não importa. O que eu quero dizer é, o cara já está fazendo o trabalho dele, por que você ainda tem que pagar uma maldita gorjeta por ele fazer a obrigação dele?
– Eu ainda quero saber como você sabe que isso aconteceu!
– Pô, ele já está recebendo o salário dele para levar as malas, ou guardar os carros, ou servir mesas, ou seja lá o que for!
– Você instalou câmeras no meu carro?
– Por que você ainda precisa pagar algo a mais? Quer dizer, tudo bem que o salário é um lixo, mas…
Mais à frente, outro farol, com mais um limpador de para-brisas que, embora vendo que meu vidro estava claramente cristalino, quis limpar novamente.
– Ei, ótimo! Deixa eu filmar para o meu canal! Aqui, aqui… Vejam só, pessoal, não tem nada que eu odeie mais que isso! A gente já falou pro cara que não quer que ele limpe o vidro, mas ele vem limpando, e vai pedir uma moeda. Isso é basicamente uma extorsão e…
De repente, o homem grudou na janela do Chato.
– Ei, você é o cara do Orgulho de Ser Chato?
Ele piscou, surpreso.
– Sim, sou eu!
– Cara, eu adoro seu canal! – disse o outro. – Você está me filmando? Eu vou ficar famoso?
– Sim! – exclamou o Chato. – Vamos viralizar!
– Cara, desce aqui, deixa eu pegar seu autógrafo!
– David, abre o carro, deixa eu descer.
– Mas, lembra que o princípio desse carro…
– Vamos, vamos, deixa eu descer! É um fã! Eu nunca encontro um fã! Cara, que da hora, meu primeiro autógrafo… Deixa eu pegar essa caneta aqui…
– Olha, sério, eu acho melhor você não…
– David, eu sou adulto, deixa eu descer! Isso aqui é cárcere privado, é?
Será que ele estava estudando direito escondido?
Enfim, dei de ombros e deixei o Chato sair. Mas, claro, assim que ele fechou a porta de volta, eu a tranquei.
O farol abriu; eu precisava ir embora, mas, nisso, vários daqueles limpadores se reuniram em volta do Chato. Não parecia uma fila para autógrafos, se é que me entendem.
Carros buzinaram atrás de mim; os limpadores viraram suas cabeças em minha direção, com olhares assustadores; e, sem pensar duas vezes, eu acelerei e saí de lá.
Eu já falei para ele que aquela ideia de canal de chatices não era uma boa… Será que agora ele me ouve?
PS: O Chato foi encontrado três dias depois em um cativeiro em Carapicuíba. Não roubaram nada dele, mas fizeram ele se retratar nas suas redes sociais por falar mal dos limpadores de vidro e outros trabalhadores informais.
Não imaginava que eles fossem uma sociedade tão organizada!
(Nem imaginava que alguém visse as redes sociais do Chato, mas, enfim, se você está aqui lendo meu texto, tem gente pra tudo nesse mundo)
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais