Chatofobia
Certo dia, estou aguardando meu próximo paciente, quando recebo uma mensagem da secretária.
“Tem um senhor aqui que disse que gostaria de falar rapidamente com você”.
Olhei para o relógio: tinha ainda uns minutos antes que o paciente chegasse e, na verdade, eles sempre atrasavam por causa do sensacional trânsito de São Paulo (com um extra especial de Natal!), então, eu até que poderia encaixar a tal reunião.
“É um representante?”, questionei.
“Acho que sim”.
Eu bufei. Representantes de laboratórios eram uma das coisas mais chatas que existiam. Eu até admiro a persistência deles e tal, mas, como ortopedista pediátrico, eu prescrevo pouquíssimos medicamentos, e muitos que os representantes vêm me apresentar não são autorizados para crianças.
Ah, sim, isso sem mencionar as vezes em que eu abro artigos científicos e discuto com eles sobre os medicamentos.
Talvez seja por isso que eles não vêm mais me visitar com tanta regularidade…
“Já vou chamar”.
De repente, ouço a secretária falando:
– Não, espere, o doutor já vai chamar!
Ato contínuo, minha porta se abre, e eis que eu vejo: basicamente como uma representação de Dom Quixote e Sancho Pança, lá estão eles, o Chato e, para a minha indescritível surpresa, seu maior inimigo, o Rabugento!
– Ebenezer?! – interroclamei.
Ele se empertigou, arrumando o paletó e a gravata.
– O que vocês dois estão fazendo juntos? Alguma colab para o canal do Rabugento?
O Chato encarou o inimigo.
– Sabe que não é uma má ideia?
– Nem vem – retrucou o outro. – Estamos aqui por outro motivo.
– Sim! – exclamou o Chato.
– Podemos sentar?
O que raios estava acontecendo ali?
– Sim, claro – respondi, apontando para as cadeiras. O Rabugento se sentou, fez uma careta e arrancou um boneco do Mickey do traseiro.
– Desculpe – falei, sem graça (mentira, eu estava me matando de rir por dentro). – Alguma criança deve ter deixado aí.
Ele jogou o boneco para o lado, cruzou as mãos sobre a mesa e me encarou. O Chato se empertigou na cadeira, mas ela havia arriado um pouco com seu peso, e tudo o que eu conseguia ver era a sua cabeça, com o queixo apoiado na mesa, o que era uma cena no mínimo estranha.
– Em que… Ahm… Posso ajudar? Dores nas costas? No joelho? Eu normalmente atendo crianças, mas consigo dar uma mão…
Sem falar nada, o Rabugento apenas abriu uma pasta que carregava consigo e tirou um papel, que colocou sobre a mesa.
– O que é isso? – questionei.
– É um acordo – ele respondeu. – Eu gostaria de fazer isso da forma menos litigiosa possível, mas, como meu cliente já pediu, reiteradamente, que você parasse de…
– Calma aí… Acordo? Cliente??
Eu olhei para o Chato, que desviou o olhar, envergonhado.
– Exatamente. Cliente.
Ebenezer estendeu um cartão: Ebenezer Dornenbaum, advogado.
– Vocês estão me processando? – questionei.
Ele respirou fundo e se recostou em sua cadeira. Depois, pegou uns óculos, que colocou ridiculamente na ponta de seu nariz adunco, puxou papéis de sua pasta e começou a, nojentamente, devo dizer, lamber seus dedos e ir mudando as páginas.
– Tenho excertos do seu assim chamado “Blog” – disse ele, fazendo aspas com a mão direita. – Provas contundentes de gordofobia, desprezo, preconceito… Enfim, a lista é enorme.
– Como é?
– Basta olhar excertos da sua última crônica, de 06 de dezembro deste ano. Veja: “Como ele não conseguiu encontrar uma camiseta que lhe servisse… circunferência, XXXXXXG”.
– Mas isso é uma constatação de um fato!
– Este número de camiseta nem existe!
– Justamente por isso que ele manda fazer tudo com alfaiate! Quer dizer, ele, não, a mãe dele.
– Ah, não me faça começar a falar sobre as vezes em que você é pejorativo em relação à mãe dele – retrucou o rabugento e limpou a garganta. – “Sabe, se a gente tivesse uma grua…”.
– Bem, eu não conseguiria hastear ele de outra forma. Ou, me diga se você teria força para puxar com aquela cordinha ridícula que hasteia bandeira?
– Não importa! Isso é gordofobia! Para não falar de desrespeito à pátria!
– Mas era ele quem estava vestido de bandeira!
– “Ele mudou de lugar, e eu juro que consegui sentir o espaço-tempo se curvando junto com ele”.
– Ah, isso você não pode negar, quer dizer, corpos com mais massa têm mais gravidade, então, claro, ele curva muito mais o espaço-tempo do que eu!
– A massa dele em relação à do planeta é insignificante! É impossível que você sinta o espaço-tempo se curvar!
– Eu tenho uma sensibilidade gravitacional aumentada e…
– Você está sugerindo que ele tem uma massa superior à do planeta!
– Eu não disse isso.
– Qualquer um que entenda de física vai conseguir pegar o que você diz nas entrelinhas!
Ficamos em um silêncio constrangido por um tempo. Ebenezer baixou os óculos e juntou as mãos novamente.
– Eu poderia passar horas e horas lendo todas as vezes em que você foi desrespeitoso em relação ao meu cliente. Minha intenção era clara: processo e reparação de danos. Estamos falando de milhões e milhões!
– Por um blog com crônicas que nem a minha própria mãe lê?! – retruquei.
– A culpa não é minha se você não passa de um escritor frustrado.
– Isso é difamação!
– É constatação de um fato, como diria você.
Touché.
– Enfim, como meu cliente, por algum motivo inexplicável, gosta muito de você, nós temos uma proposta. Um acordo em que você concorda em nunca mais difamar o meu cliente. Ele irá esquecer tudo o que se passou, contanto que você se retrate na próxima crônica que escrever.
Eu bufei, sem opção. Acho que nem adiantava entrar nos méritos dos milhares de reais que já havia gastado com o Chato, das várias vezes em que ele roubara meu cartão ou de coisas que fizera em meu nome. Certamente, o Rabugento pediria provas e viria com alguma saída cretina para seu benefício próprio.
– Eu não acredito que você quer fazer isso – falei, olhando para o Chato. – Em todos esses anos que a gente se conhece… Você nunca falou… Sempre foi pelo humor, nunca uma gordofobia! Eu mesmo já fui gordo!
O Chato permaneceu em silêncio. Certamente, havia sido orientado pelo seu advogado a não falar nada, para não atrapalhar.
Eu peguei o acordo, olhando-o.
– Mas, se é só um acordo, sem pagamentos, como ele está pagando seus honorários? – perguntei, por fim.
– Eu me ofereci. Pro bono. Adoro ajudar os necessitados – disse ele com um sorriso amarelo e falso.
Revirei os olhos e comecei a ler. Lá estavam meus dados e, também, os dados do Chato. Quer dizer…
– É sério que você não colocou o nome dele aqui?
– O quê?
– Aqui, ó! No nome dele, em vez do nome verdadeiro, você simplesmente pôs “O Chato”.
– Eu…
– Isso é chatofobia! – exclamei, triunfante. Virei-me para o Chato. – Veja, que absurdo! Isso era tudo um plano do Dornenbaum! Ele se fingiu de seu amigo, como um lobo fantasiado de ovelha, e, no final, tudo o que ele queria era a oportunidade de zombar da sua cara! Como você pode confiar em um advogado que nem sequer sabe o seu nome?
– Eu…
– Eu conheço uma advogada – disse para o Chato. – Aliás, mais de uma. Tem vários na família. Vamos, junte-se a mim e vamos processar esse Rabugento!
O Chato sorriu. Saltou da cadeira e, ao voltar ao chão, o prédio (parte censurada em consideração ao meu… “amigo”).
– É isso aí! – ele exclamou. – Eu e você, como Batman e Robin! Como Telma e Louise! Como Brokeback…
– Ei, calmaí!
– Vamos dar um fim nesse Rabugento! É isso aí, Ebenezer! Pode aguardar a intimação dos nossos advogados! Você tá demitido! Vaza daqui, vaza! – disse ele, e com um empurrão, jogou-o para fora do meu consultório.
Depois, voltou para mim e me deu um abraço apertado. Acho que quebrei uma costela.
– Desculpa, David, eu não queria fazer isso, mas ele simplesmente me encontrou no clube e começou a falar, e você sabe como ele tem lábia!
– Tudo bem, tudo bem… Mas, me diga uma coisa: você realmente fica chateado com o que eu escrevo sobre você?
– Que nada! Eu fico lisonjeado! Me sinto até mais magro!
Arregalei os olhos. Sério, mesmo?
– Mas, minha preocupação está com os leitores. Eles talvez não entendam esse nosso relacionamento.
– Relacionamento?
– Enfim. Acho que seria mais seguro para você se parasse de fazer estes comentários e estas descrições, sabe? Dá para ser engraçado sem apelar para isso.
– Mas, como eu vou descrever você?
– Eu tenho outras características marcantes. Minha pele resplandecente…
– A careca brilhante, você quer dizer?
– A doce visão de mim mesmo…
– Você quer dizer, a retinopatia diabética?
– Meu sorriso fulgurante?
– Ah, isso, tudo bem, ele é razoavelmente cativante. Queria saber como você deixa tão branco.
– A risada envolvente…
– Esmagadora?
– O bom gosto para moda…
– Bem, gosto não se discute.
– A autoestima apurada…
– Sua mãe fez um bom trabalho.
– E…
Ele continuou assim por muito tempo ainda, até meu paciente chegar, e o seguinte também, e eu ter de implorar que ele saísse para que pudesse voltar a trabalhar.
Horas depois, quando finalmente me sentei diante do computador, fiquei pensando: será que eu conseguiria respeitar a vontade do Chato e não fazer mais comentários jocosos sobre a sua massa e estatura?
E quando ele começasse a reclamar que eu não o chamo pelo nome correto? Será que ele viria me processar por chatofobia?
Esses meus amigos complicados…
PS: em consideração ao Chato, aproveito este momento para me retratar por todas as vezes em que fui pejorativo em relação a ele; nunca foi com má intenção.
Obesidade é considerada uma doença e tem tratamento. Converse com seu médico!
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais