Compras Chatas de Natal
Inicio sempre as minhas crônicas dizendo que incorri no erro de fazer alguma coisa com o chato. Pensei que, como mudamos de ano, eu deveria começar esta crônica de alguma forma diferente, para não me tornar tão repetitivo; contudo, como isto não iria me eximir de forma alguma da minha parte neste erro crasso e cármico que eu tanto repito, acho que talvez eu deva mantê-lo sempre desta forma, cármica e repetitivamente.
Portanto, neste natal incorri no erro de ir fazer as compras de natal com o chato. Eu poderia até dizer que foi uma, duas, até três semanas antes do natal, mas isto, também, não me eximiria de forma alguma da minha parte neste erro crasso e cármico (para não dizer universal) que é fazer compras de véspera. O que também não faria de todo diferença, porque tudo estava caótico na cidade já desde novembro.
Mas talvez seja melhor também eu fazer uma correção, esta para me eximir da culpa; o chato veio fazer compras comigo, e não eu com ele.
Estava eu no trânsito caótico de São Paulo quando um ser baixinho, gordo e careca surge ao meu lado. Juro que é um superobeso pedindo dinheiro no farol para fazer uma cirurgia bariátrica, mas, ó, qual não é a minha surpresa quando encontro o chato parado ao meu lado.
– O que cê tá fazendo na rua?! – interroclamei.
– Me dá uma carona? – ele pediu.
O farol abriu atrás de nós e os carros imediatamente buzinaram, como se o mundo fosse acabar.
– Entra logo, vai! – falei, com medo de que ele fosse atropelado¹. – Anda logo! – completei, gritando, porque ele andava devagar como uma tartaruga tuberculosa.
Quando ele finalmente entrou no carro e fechou a porta, acelerei, antes que me matassem. Logicamente, o farol fechou atrás de mim, e uns três carros ainda passaram, enquanto os outros ficaram xingando; neste meio tempo, o chato reclamava que eu havia saído sem ele pôr o cinto, e que isso era perigoso, e que eu arranquei, e que as pessoas não têm paciência nessa cidade, e que cruzando desse jeito com o farol fechado eles poderiam causar um acidente, que eles iam levar multa, que tudo isso era um absurdo, cadê o espírito natalino, todo mundo estressado neste fim de ano…
Quando ele terminou seu discurso chato, já havíamos avançado duzentos metros (o que, em termos paulistanos, significa 20 minutos); ele parou, olhou para o lado, arrancou minha mão da marcha (e eu, em uma atitude ninja, controlei com a embreagem, mudei a marcha com a mão esquerda, virei a direção com o joelho e desviei de uma velhinha que cruzava a rua), olhou para o meu dedo anelar e berrou:
– Não acredito!!!!!!!
– O que foi?
– Você ficou noivo!!!!!!
– Sim.
– Não acreditoooooooo!!!!!!
Ele começou a hiperventilar. Para se controlar, abriu a janela e colocou a cabeça para fora como um cachorro; cem metros (dez minutos depois), ele voltou.
– Eu li no seu blog, vi sua atualização no face, vi no seu twitter, mas eu não acreditei. Tinha de ver com meus olhos. Não era possível. Você. VOCÊ. Ficou noivo? Noivo?
– Que que tem? Eu namoro há quatro anos, o que você queria?
– Não importa! Você sempre foi contra essas coisas! Não lembra o quanto você me criticou por pedir a Marla em casamento?
– Na verdade, eu critiquei por você destruir um relacionamento perfeito.
– Então! O que raios você está fazendo agora?
– Tem uma grande diferença. Eu não sou você, e a Mirian não é a Marla.
– Não obstante!² E você vai casar quando? Você nem se formou! Vai viver de quê? Como? Não é possível! Você é uma criança ainda! Que absurdo!
Eu tentei responder “Em 2012” e “Depois que eu me formar” e “Eu vou trabalhar depois de formado”, mas simplesmente desisti, percebendo que o chato era mais feliz sendo um chato autossustentável (o que é ecologicamente correto, não?). Depois de uns cinco minutos com esse discurso, ele parou.
– Mas a aliança é bonita, não? – comentou. Foi o primeiro elogio do chato que eu talvez tenha ouvido na vida, e eu ia responder, quando ele prosseguiu. – Mas esse trânsito é um absurdo! Pelo amor de Deus! Como as pessoas ficam doidas neste final de ano! Eu nunca vi. Olha isso! Olha issô! O cara te fechou! Te fechou!!! Cai fora, seu imbecil! – berrou ele, tentando buzinar, mas não achou a buzina (graças a Deus hoje em dia estão fazendo carros com botões pequenos, para as pessoas não saírem socando o volante na tentativa de buzinar) e prosseguiu berrando.
Quando o cara do outro carro ameaçou a sair para brigar com o chato, o farol abriu, o que me permitiu fazer uma curva corrida à esquerda, acelerar, outra à esquerda, acelerar, e mais uma à esquerda, e acelerar, e cair no mesmo lugar, um quarteirão (e dez minutos) antes de onde eu estava. Mas relativamente seguro, ao menos.
– Você está indo pra onde, afinal?
– Vou comprar os presentes de natal – respondi, mudando de estação para a Jovem Pan.
– Não, muda dessa rádio, eles tocam a mesma coisa o tempo todo, não aguento mais ouvir o Justin Biba – retrucou ele, mudando para uma rádio de sertanejo de quinta catigoria.
– Pelamordedeus, muda disso! – reclamei, botando na Kiss.
– Mas sertanejo agora é chique! Eu li na capa da Veja São Paulo! – ele falou, cruzando os braços e fazendo um beicinho.
– Nem vem. Vai ficar na Kiss e eu não quero nem saber.
Caminhamos mais dez metros ao som de Fear of the Dark.
– Que mal me pergunte, você não é judeu? Por que raios você vai comprar presentes de natal?
– Apesar de ser judeu, eu moro em um mundo cristão controlado por uma febre mercantilista. Todo o resto comemora natal.
– Ah…
– E o pior é que eu dou presente pra todo mundo por causa disso e não ganho nenhum, porque, afinal de contas, se eu sou judeu e não comemoro, por que os outros vão me dar presentes?
– Faz sentido – o chato respondeu, pensativamente. – Vou riscar você da minha lista de natal.
– Tudo bem, eu já não pus você na minha, mesmo.
– Como assim?!?! – duplinterroclamou.
Achei melhor não responder. Em três segundos ele mudaria de assunto.
– Você cria um amigo por mais de oito anos… Ozzy Osbourne, Yeah!
A música havia mudado e ele aumentou o volume. Eu estava a salvo.
Depois de mais meia hora, entramos no estacionamento do Shopping, que era descoberto e tinha apenas umas cinquenta vagas. Rodamos para lá e para cá, duas três vezes e não achamos nada; o chato se irritou.
– Mas que absurdo! Não me conformo com isso! Que estacionamento horrível! Não tem nem Sem Parar! Quer dizer, só tem Só Parar. Que horror! Vamos embora daqui! Bem que falam, a avaliação de um shopping começa pelo seu estacionamento. Ai, que coisa horrível!
Ele me encheu tanto que eu saí de lá e, usando o GPS, fiz uns caminhos estranhos para chegar até o outro shopping (Que caminho estranho ele tá fazendo? Nossa, quanta volta ele tá dando! Que coisa ridícula! Por que ele tá vindo por aqui? Deveria ter pegado por lá! Eu não tô entendendo este mapa. Não era pra ter entrado lá? Entra aqui, aqui, ó! Não segue ele não! Segue ele, vai! Por que você não tá seguindo ele? Como faz pra ele falar? Dá pra pôr em chinês? Ai, que que eu fiz? Arruma, arruma! Olha o carro! Nãããooo!!!).
Quando você afinal chega a uma avenida com uma ou duas pistas totalmente paradas no final do ano em São Paulo, você tem certeza de que você está perto de um shopping. E, de fato, depois de uns quarenta minutos, conseguimos finalmente entrar na fila do estacionamento; trinta minutos depois, passamos pelo guichê. Fomos para o G1, rodamo-lo inteiro, e não havia vagas. Aí, fomos para o G2, e também não havia vagas. Aconteceu o mesmo no G3, G4 e G5.
– Mas que absurdo! Imagine se eu quisesse só vir comprar uma coisa rápida aqui? Pelamor! Nunca ia conseguir. Você gasta uns quarenta minutos só para achar o lugar! A tolerância deveria ser aumentada para uma hora! Que absurdo. E é a mesma coisa quando você sai. Você paga o estacionamento e tem vinte minutos de tolerância, mas passa quase meia hora procurando seu carro e mais meia hora para sair do estacionamento! Que absurdo!
Neste meio tempo, eu continuava procurando vagas e estava seriamente pensando em jogar meu carro no abismo logo ao lado, quando um carro ameaçou sair. Eu embiquei; o carro ao meu lado embicou; os dois aceleraram, ameaçando, prontos para tirar um racha. E, quando o carro saiu da vaga e veio em minha direção, eu acelerei contra ele e desviei em cima da hora; ele desviou para o outro lado, acertando o meu carro inimigo, e eu, cantando pneus, estacionei na sua vaga. Como era apertada, levei mais cinco minutos para entrar, o que tirou todo o meu respeito, mas os outros dois estavam mais interessados em se esmurrar por causa da batida do que qualquer outra coisa, de modo que nem perceberam.
Saí andando tranquilamente como o Leonardo DiCaprio naquela foto que virou um dos top 10 memes de 2010. O chato veio andando atrás como a rocha do Indiana Jones.
E fomos às compras; lojas entupidas, produtos faltando, gente demais por todos os lados, mal conseguíamos andar. O chato reclamou de tudo o tempo todo e foi andando pelo chão, mais de uma cabeça abaixo de todo mundo e mais de duas pessoas mais largo que todo mundo, derrubando-os sem se importar. Se fosse um pouco mais ágil, ele seria um ótimo batedor de carteiras; mas a única com a qual ele fazia isso era justamente a minha.
– Mãe. Checa. Pai. Checa. Tio Mané, checa. Tia Cida, checa. Sogro, checa. Sogra, checa. Vó da Mi, checa. Vô da Mi, checa. Agora, chocolates.
Enquanto isso, o chato checava a lista dele.
– Mamãe, checa. Papai, checa. Mamãe, checa. Papai, checa. Ahm… Mamãe…
Comprei chocolates para o pessoal que trabalhava no meu prédio e para a caseira da casa de praia; infelizmente, a moça não embrulhava tudo para presente e apenas colocou os papéis na sacola para eu embrulhar.
– Mas que absurdo! Eu lembro a época em que as pessoas faziam aqueles embrulhos elaborados e tudo mais! Hoje em dia, onde já se viu, que absurdo, não querem nem saber. É a total desmoralização dos embrulhos! Eu ainda…
Ele se perdeu na massa, e eu prossegui. Pouco depois, emergiu como a Moby Dick.
– Não me abandona! – chorou. – Você sabe que eu tenho medo de me perder em multidões!
– Se a gente se perder, vai lá naquela central do shopping onde eles anunciam, sabe? – sugeri. – Aí você pede para me chamarem. Mas fica por lá até eu aparecer.
– Certo! – disse ele, feliz. Eu havia me importado com ele! – Vou esperar até você ir me buscar!! – falou, piscando animadamente.
Ignorei o comentário de segundas intenções esquisitas e prossegui.
– Muito bem, agora tenho de comprar presentes para bebês. Já gastamos uma nota com presentes para a sobrinha da Mi e com o chá de bebê de um colega meu. E sabe o que é o pior?
– O filme do Chico Xavier?
– Também. Mas não. Ainda tenho de comprar o presente para o nascimento da filha desse colega. E um presente para um bebê que acabou de nascer. E ainda tem mais duas amigas que ficaram grávidas! E uma de gêmeos, ainda por cima! Pelo amor de Deus! Com nascimentos, aniversários e tudo mais, eu vou à falência!
– Festas e bebidas só dão nisso. Veja só. Desvarios de carnaval e final de ano. Vergonha! – retrucou o chato.
Entramos afinal na loja de bebês e começamos a comprar as coisas para os bebês. Bom, na verdade, para ser mais justo, eu entrei na primeira loja, e dois fios de cabelos brancos cresceram em mim ao ver o preço. Na segunda loja, mais três. Na terceira, já foi um cacho. Quando cheguei à última, foi uma mecha inteira. Decidi voltar à primeira e lá fui eu comprando os presentinhos.
Peguei todas as sacolas e olhei para o chato; ele estava enfeitiçado pela televisão, vendo um novo episódio de Bakugan. Foi a minha oportunidade. Com uma agilidade de Naruto (tenho de fazer jus ao ambiente infantil), desapareci no meio da multidão, andando inclinado para não ser reconhecido, e corri para o estacionamento. Meia hora depois, achei o meu carro; podia ouvir nos alto-falantes a moça falando que o chato esperava por mim na área infantil do shopping. Vinte minutos depois, consegui chegar ao guichê, onde guardas faziam uma batida para descobrir onde estava a pessoa responsável pelo chato que estava enchendo o saco de todo mundo e fazendo as crianças chorarem. Para a minha sorte, o chato não só era chato como também cego, de modo que a descrição que ele fez de mim de nada era semelhante ao meu eu real (para vocês terem uma ideia, ele falou que eu parecia o neurocirurgião do Grey’s Anatomy). Passei pelos guardas sem dificuldade e entrei no estacionamento a céu aberto da avenida ao som de Freebird, de Lynard Skynard.
I’m as free as a bird now…³
Nota do autor, setembro de 2021: conforme envelheci, as crônicas do Chato ficaram mais sóbrias e ele parou de se transformar no Bizarro-Rulque, que seria o final usual quando eu era mais novo. E, especialmente, depois de ter filhos, descobri que sair comprando presente de natal para todo mundo era uma doideira inflada pela nossa sociedade capitalista (tá bom, na verdade, eu tinha de escolher bem onde gastar meu dinheiro, e certamente não era uma boa em presentes para
¹ Não, estou mentindo. Disse isto só por gentileza. Na verdade, falei para ele entrar porque estava com medo de os carros passarem por cima de mim. E, obviamente, se começassem a empurrar meu carro para frente, eu bateria no chato e ativaria os airbags, o que me custaria uns três mil reais para arrumar.
² Ele deveria estar em uma livraria antes disso.
³ “Estou livre como um pássaro agora”.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais