Copa do Mundo Chática
– É um absurdo esse trânsito todo! Quer dizer, caramba, eu também quero assistir o jogo! Por que esse povo tem de ficar ensebando no meio da estrada?
Saímos do carro.
– Aliás, eu acho que você é que deveria morar em outro lugar. Sério, por que se esconder no meio do mato? Se você morasse na cidade, em um lugar que não precisasse de estrada, seria muito mais acessível, menos trânsito, menos problemas com acidentes…
E mais fácil para você me encontrar, né?
– E ainda seria muito mais fácil para eu te visitar! Quer dizer, só benefícios! – disse o Chato, abrindo os braços.
Revirei os olhos.
O Chato estava vestido a caráter para o jogo da copa entre Brasil e Coreia do Sul. Porém, claro, como ele não conseguira encontrar uma camiseta que lhe servisse – ele precisava que o comprimento fosse de tamanho 8, e a circunferência, de XXXXXXG –, a sua única opção foi pegar uma bandeira do Brasil e se enrolar nela.
Estava ridículo, mas patriótico. Só faltava um caminhão para ele se agarrar e sair circulando por aí.
Entramos em casa faltando cinco minutos para o jogo, e todo mundo já estava sentado lá, de frente para o sofá, com amendoim e bebidas.
– Papai! – meu filho veio me cumprimentar; e, na sequência: – Quem é ele? Por que ele tá enrolado na bandeira?
Eu olhei para o Chato; este era o momento! Ele finalmente ia se apresentar para alguém e, depois de 18 anos, eu finalmente iria descobrir o seu nome!
– Oi, você deve ser o Benjie, né? Seu pai fala muito de você. Eu sou um amigo do papai. Meu nome é…
Eu arregalei os olhos, ansiosamente. Era isso, finalmente!
Mas, bem nesse momento, a Melissa veio gritando e pulou em mim:
– Papaaaaaaaaaaaaaiiiiiiiiiiiii!
– Mas pode me chamar de tio.
Nãããããããããããooooooo!
Por tão pouco! Estava tão perto de descobrir o nome dele! Mas, pelo menos, o Benjamin devia ter ouvido, então, era só questão de esperar e perguntar.
– David, anda logo, já vão cantar o hino! – chamou minha esposa.
A gente se enfileirou em frente à televisão, o Chato enrolado em sua bandeira.
– Sabe, se a gente tivesse uma grua, a gente poderia hastear você – comentei, murmurando para ele.
– Muito engraçado. Quem fez essa bandeira aqui foi a mamãe e…
– Vocês dois, quietos! – exclamou ela. – Mais respeito ao hino!
Dois segundos de silêncio.
– Sabe, eu nunca sei se a gente deveria cantar com a mão no peito, ou em posição de sentido, ou…
– Quietos!
– Sim, senhora!
Terminado o hino, nós nos sentamos; como, ao pegar o lugar da ponta, o Chato inclinou o sofá (e a casa) para o seu lado, a gente sugeriu que ele se sentasse na poltrona.
– Vai ser melhor – eu disse. – As crianças ficam pulando em cima da gente no sofá, sabe?
Ele mudou de lugar, e eu juro que consegui sentir o tecido do espaço-tempo se curvando junto com ele.
Depois de alguns momentos:
– Vocês não vão colocar na Globo? – ele questionou.
– Por quê?
– Para ouvir o Galvão! Não tem nada como gritar “Cala a boca, Galvão!”. Pode ser a nossa última chance!
– Não, a Globo estava atrasada da outra vez, melhor não. Não tem nada pior do que o povo gritando “gol”, no maior spoiler, e você sem saber.
Ele resmungou algo que eu não entendi (nem quis entender).
– Sabe, a gente deveria assistir no canal do Cazé. Temos que ajudar a bater o recorde mundial de transmissão ao vivo!
– Da outra vez, ele tava atrasado, também. A gente vai tentar Sportv, agora.
– Ninguém merece… – disse ele, enfiando a mão na tigela de amendoim e enchendo a boca de uma vez, parecendo um hamster faminto. – Por isso que eu falei que a gente deveria assistir lá no The Square. Chope grátis a cada gol do Brasil, sem spoilers…
Eu fiquei em silêncio.
E o jogo começou; depois de uns três minutos, o Chato bufou, mandando migalhas de amendoim pela casa.
– Sabe, eu não sei por que a gente se dá ao trabalho de assistir o primeiro tempo – ele disse. – Todo mundo sabe que o Brasil só começa a jogar no segundo.
Demos de ombro.
– O legal é ver o jogo todo.
Mais três minutos.
– Ah, quer saber, eu vou fazer xixi – disse ele.
Pouco depois…
– GOOOOOOOOLLLLLLLLLL!!!!!!!
– Como é, como é??? – exclamou ele, saindo tão estabanado do banheiro, que a braguilha ainda estava aberta. – Não acredito que eu perdi! Já foi gol? Como assim? Esses coreanos não sabem jogar?
Ele ficou atrás do sofá, olhando o replay.
– Olha que golaço do Vinicius! – exclamei.
– Bah, não fez mais que a obrigação – disse ele. – Bom, deixa eu voltar lá, que eu nem tinha começado…
E, pouco depois…
– GOOOOOOOLLLLLLLLLL!!!!
– O quê?!?!
Desta vez, ele saiu correndo com as mãos molhadas.
– Como assim! Gol de novo?
– Pênalti, dessa vez foi o Neymar.
Ele parou atrás do sofá para ver.
– Bah, de pênalti não tem graça – disse ele, e se sentou em sua poltrona, puxando o espaço-tempo com ele.
E o jogo prosseguiu, com o Chato reclamando de tudo: das jogadas à arbitragem, de filhos de presidente com pen-drives a jogadores comendo bifes com folha de ouro e do calor do Doha (sendo que ele nem estava lá) ao fato de que o estádio 974 seria desmontado após o jogo.
– Quer dizer, tanto trabalho para montar o estádio, e os caras vão desmontar?
– É melhor que ficar com um elefante branco, ocupando recursos que seriam mais úteis em outra coisa…
Mais um tempo.
– Viu, eles não estão jogando nada de novo. Sempre assim. Faz um gol, acha que tá com o rei na barriga, agora só querem ir levando o jogo, até a Coreia vir e…
– Olha os vizinhos! Foi gol! – disse minha esposa.
– O quê? Como você sabe?
– Aqui está atrasado. A gente já sabia do gol do Neymar antes mesmo dele cobrar o pênalti.
– Ah, não! Aqui tem spoiler, então? Ninguém merece! A gente tem que…
– GOOOOOOOLLLLLLLL!!!!!!!! Com spoiler ou não, é goooooooooool! – exclamei.
– Não, David, sério, a gente precisa resolver isso.
– Quer parar de ser chato? Deixa rolar, não tem problema o spoiler, até aplaca um pouco a ansiedade!
– Não, sério, a gente precisa achar um canal que… – disse ele, levantando-se e indo para a televisão.
– Não mexa nessa TV! – exclamou minha esposa, levantando-se, e, eu juro, em um verdadeiro estilo asiático, deu para o ver o Qi dela girando e ela quase se tornando uma super sayajin. – No intervalo vocês veem isso!
O Chato se encolheu como uma Jabulani e voltou para a poltrona. Eu fiquei só comendo pipoca e me divertindo, quase como o Michael Jackson no começo do clipe do Thriller.
– Olha lá, vai ser gol, vai ser gol… – começou ele.
– Não, se os vizinhos não gritaram, não vai.
– Maldito spoiler! Não dá, não dá!
Ele pegou o celular, colocou um fone e tentou ligar no canal do Casimiro, no YouTube. E, de repente…
– GOOOOOOOLLLLLLLL!!!!!!!!!!
– O QUÊ?!?! Como assim? Aqui tá mais atrasado ainda? – disse ele olhando para a tela. – Passa o replay! Passa o replay!
No seu fone, um grito: Gol!
– Ah, não acredito! Perdi no YouTube, também? Esse é o pior jogo da minha vida!
Desesperado, ele tentou pegar sinal de TV aberta no celular, para ver se na Globo estava menos atrasado, mas, claro, não conseguiu.
Quando o intervalo chegou, enquanto os jogadores recebiam instruções do Tite para dar uma segurada no ritmo e se poupar para os croatas na sexta-feira, o Chato tentava, a todo custo, achar algum lugar que estivesse passando o jogo sem spoilers. Mas, claro, ele não conseguiu.
– Ah, quer saber? Eu vou sair daqui! Vou lá no The Square, eu já perdi minhas quatro rodadas de chope, não quero perder mais nenhuma! Hoje é dia de se vingar da Alemanha! 7 a 1 é pouco, eu quero é 10!
E, com isso, lá foi ele enrolado em sua bandeira, condomínio afora.
Em casa, respiramos aliviados e o espaço-tempo recuperou sua curvatura normal.
Não tentamos mudar de canal; simplesmente nos conformamos em ter spoilers e ficamos sabendo que haveria gol da Coreia uns vinte segundos antes de ele acontecer.
Enquanto isso, do outro lado da Raposo…
Depois de derrubar umas três pessoas (todas com menos de 10 anos), o Chato havia conseguido um lugar na área infantil do restaurante. E, enquanto ele olhava atentamente para a tela, homens ao redor batiam nas coxas, com os celulares nas mãos. Até que…
– Aaaahhh!!!! – ecoou por todo o restaurante, quando a rede brasileira balançou.
– Não acredito que até aqui tem spoiler!!!! Que absurdooooo!!!!!
O jogo prosseguiu, o Chato pulando e gritando por um golzinho, só mais um, até que…
– Apita o árbitro! Fim de jogo, 4 a 1 para o Brasil! – disse o narrador.
– Não! Não é possível! O Brasil resolveu agora que só quer jogar no primeiro tempo? Eu quero a minha rodada de chopeeeee!!!! Esse foi o pior jogo da minha vida!!!
PS/Spoiler: mais tarde, perguntei ao Benjamin qual era o nome que ele tinha falado para ele.
– Não sei, a Mel gritou bem na hora, eu não entendi. Mas, você não sabe o nome dele não, papai?
O mistério continua.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais