De Carnaval, Cinema e Chatos
– Tem certeza de que ela não vai me achar aqui?
– Pelamordedeus, a gente tá em São Paulo! A Marla foi vista pela última vez no aeroporto e, pelo que eu sei, ela foi pras ilhas Cayman procurar você em algum caixa dois!
– Não sei, eu to com medo…
Era carnaval e, como de costume (costume adquirido há dois anos, notem), eu não fui pra praia pelas mesmas razões de sempre. Além disso, como eu estava vivendo em Sorocaba, aproveitei os dias de feriado (e matei dois dias de aula) para matar a saudades dos meus amigos daqui.
O que me levou a sair com eles, em plena quarta-feira, depois de uma tempestade, para ir ao cinema; eu, o inseparável chato (o qual misteriosamente reaparecera no meu apartamento três dias depois da visita à faculdade, curiosamente quando eu estava entrando no carro pra voltar pra casa), Arthur, o loiro, e Aline, a loira. O que íamos ver: A Pantera Cor-de-Rosa. Pelo menos, era barato; só R $5,50 a meia (claro, como o chato não era estudante, ele precisou pagar uma inteira, não adiantou mostrar a camiseta de calouro pra tentar enganar a mulher).
– Putz, fazer pedágio aquele dia foi fogo… Minha cabeça tá descascando até hoje, pode?
– Sabe o que seria bom? – comentou meu amigo naturalmente sem cabelos. – Protetor solar em pílulas.
– Ahm?
– É, imagina só, você não tem que ficar passando, é só tomar e pronto!
– Mas de que ia adiantar? – retrucou o loiro. – Quer dizer, pra que uma pessoa ia querer não queimar o estômago?
– Pelo menos ia ser bom para tomar café quente demais – opinei.
– Não, você não entendeu, a pílula se desfaz, a corrente sanguínea absorve e depois vai tudo pra pele!
– Não é mais fácil simplesmente passar o protetor?
– Gente, vamo entra? – disse a loira, e nós a seguimos.
– Mas é sério, seria uma ótima invenção, eu aposto que ia fazer sucesso. Imagina o trabalho que dá pros alemães passarem toda vez que saem no sol? Uma pílula só e pronto! Não precisa passar pelo dia todo! No Panamericano, ia fazer sucesso.
– Se não roubarem eles…
– Que tal fazer uma modificação genética – falei – e fazer glândulas sudoríparas que soltam protetor? Seria melhor ainda e não sairia com suor!
Com isso, o loiro começou a rir e o chato ficou com cara de traseiro, pra não dizer coisa pior.
Por fim, entramos no cinema.
– Eu quero a última fileira!
– Primeira, primeira! Todo mundo coloca a cabeçona na frente da minha!
– Então fica no corredor!
– Pra mim tanto faz…
– Na frente não!
– Tá, Aline, escolhe um número de um a três.
– Ahm… Dois.
– Tá bom, então é essa fileira aqui.
– Mas quem disse que dois é essa? – retrucou o Arthur. – Dois é a última!
– Tá bom, então – aceitei. Note que eu deveria escolher as fileiras, mas tudo bem.
Com isso, o chato foi completamente ignorado da conversa e nós nos sentamos na última fileira (ou linha, ou sei lá), deixando ele no corredor, os pés balançando na cadeira alta e apertada para ele.
– Eles não ligam o ar-condicionado nunca? Que inferrrrno!
– Já tá pegando sotaque de Sorocaba? – perguntei (com sotaque).
– Alguém quer pipoca? – perguntou a Aline e sumiu, indo comprar pipoca. O loiro fez a mesma coisa, indo no banheiro, deixando eu do lado do chato pra ouvir a reclamação de que ele estava pegando sotaque de tanto ficar naquela cidade inferrrrrnalmente quente.
– Então, deixa eu te perguntar – disse eu, pra cortar o assunto. – Dia 25 de maio não é uma quinta?
– É sim.
– Então como que teu casamento é numa quinta? Não podia ser sexta, ou sábado, ou domingo, algum dia normal?
– É que se a gente se casar nesse dia, a Marla junta as férias nupciais com as férias normais e acaba ficando com dois meses, no total. Aliás, que raios é isso? Eu não tenho isso onde eu trabalho!
– Onde você trabalha, mesmo?
– Não vem ao caso – retrucou ele, grosseiramente, olhando pra tela. – Então, o que é a pantera cor de rosa?
– É o diamante.
– Mas no filme não tem a pantera?
– Não, só o diamante.
– Mas que raio de filme é esse? Deveria aparecer a pantera, que nem no desenho!
Nesse momento, o Arthur chegou, pra explicar tudo.
– A pantera na verdade é o detetive. A verdade é que a pantera cor de rosa tinha um desenhinho no começo da versão antiga, e o pessoal via o desenho, achava que o filme tinha acabado e ia embora. Por isso, o filme foi uma merda e o desenho fez sucesso. E virou série.
– Olha só… Quem diria que a mascote faz mais sucesso que o ator principal…
– Imagina como os atores se sentem depois de uma dessas…
– Que absurdo! Eu tô pagando onze reais pra ver a pantera cor-de-rosa e eu quero ver a pantera cor-de-rosa!
– Olha o comecinho aí. Ela tá batendo no leão da MGM. Não tá feliz com isso?
– Ah…
– Calabocaê, pô! – berraram de lá da frente, e nós ficamos quietos.
Até a Aline chegar com a pipoca.
– Ei, gente, eu trouxe mais sal. Quem gosta de mais sal?
– Não, não coloca sal senão eu não como! – exclamou o loiro.
– Não, coloca mais sal! Eu gosto de bastante sal! Coloca os dois pacotes!
– Mas eu não posso comer sal por causa da pressão! – exclamou o chato.
– To brincando, Aline, pode colocar sal! – disse o Arthur, quando ela ficou paralisada com o que ele dissera.
– Mas eu não posso comer sal! Que raios de democracia é essa? Mas que absurdo!
– A pipoca não é nem sua! – falei. – É da Aline, e se ela quiser colocar sal, ela coloca!
– Mas que absu…
– CALABOCAÊ, PORRA! Eu quero ver o filme! – berrou um japonês, sentado bem na nossa frente, enquanto outro se matava de rir do detetive Clouseau.
Com isso, ficamos quietos.
No banheiro, uma hora e meia depois…
Eu no mictório, Arthur no bóquis da direita, o chato no da esquerda e o do meio ocupado.
– Nossa, vocês viram aquele pentelho? Reclamando no meio do filme? Eu vou te dizer… – começou o chato, enquanto saía do bóquis. – Eu acho que ele tava atrapalhando mais do que qualquer um de nós.
Nisso, o loiro também saiu, e estávamos todos lavando as mãos, o chato ainda reclamando. Eu e o meu amigo nos entreolhamos; aquilo não ia terminar bem.
– Quer dizer, o cara berrou no meio do filme! Eu tava falando baixo. Ele atrapalhou o meu filme. Mas que cara chato! Se eu encontrasse ele…
De repente, o japonês que berrara sai do bóquis do meio, com uma cara nem um pouco bem humorada. Eu e o Arthur nos entreolhamos e saímos rapidinho dali, o meu amigo careca ainda lavando as mãos (ele parecia ter TOC, às vezes).
– Eu juro que eu berrava na cara dele bem assim, Eu tô te atrapalhando, então vai…
Do lado de fora, encontramos a Aline, que perguntou pelo chato.
Barulhos estranhos vieram do banheiro, mas nós dissemos que ele já tinha ido embora, que a mãe dele estava doente, e fomos passear pelo shopping.
E o filme? Ah, é legalzinho. Mas o desenhinho do começo é a melhor parte…
Nota do autor, agosto de 2021: o Arthur foi meu colega de escola e, na realidade, é meu amigo até hoje. Atualmente, é ortopedista especialista em ombro e trabalha no País de Gales. Ele sempre adorou me contradizer.
E, já diria uma certa letra de música, nossa amizade dá saudade no verão…
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais