Desbloqueando talão de cheques
Alguns dias atrás, o Chato descobriu que havia acabado com todas as folhas do seu talão de cheques e, tendo um cartão de crédito daqueles de criança, com limite de cem reais sustentados pela sua mãe, ele passou o maior carão na loja de gibis. Envergonhado, uma vez que eu não estava junto e ele não podia simplesmente jogar a conta para mim, ele decidiu desbloquear um dos vários talões acumulados que tinha na sua casa.
– Não acredito que vou ter de desbloquear o talão. Aliás, não acredito que vou ter de usar talão de cheques! – e ele deveria estar irritado mesmo, porque usar o talão significava usar o dinheiro da sua própria conta, coisa que ele não fazia costumeiramente, algo que se observa pelo simples fato de que, em mais de 10 anos de cliente do banco, ele só esgotara um talão. – Afinal de contas, quem é o atrasado social e monetariamente de hoje que usa cheque?
Imagino que estejam curiosos com quem seria o interlocutor desta conversa, já que eu não estava presente, e toda esta crônica me foi contada diretamente pelo Chato; pois vou lhes responder: é Wilson, o urso de pelúcia homônimo à bola do Náufrago, em uma semelhança que simplesmente dispensa maiores explicações.
Wilson, o urso, obviamente não respondeu, e o Chato prosseguiu.
– Bom, vamos lá. Primeiro, preciso achar meu talão bloqueado.
Ele abriu uma gaveta de sua cômoda onde, um dia, iniciara um arquivamento organizado de contas e cartas, mas que, em questão de três meses, tornara-se um confinamento do caos. Começou um lento chafurdar, que não levou a nada, já que havia um mar de papéis, e, irritado, arrancou a gaveta da cômoda e virou todo o seu conteúdo no chão do quarto.
– Pronto, agora tenho uma ampla visão da situação, certo, Wilson?
Em seu silêncio, Wilson, o urso, concordou.
O Chato, então, começou a espalhar tudo pelo chão, jogando os mais diversos tipos de papéis para todos os lados; por cima, não conseguiu identificar o talão, então resolveu passar as mãos suavemente por sobre a papelada, até identificar o formato do talão.
O que obviamente não adiantou em nada, levando-o a se jogar por sob os papéis, quase como uma baleia branca atolada na praia, tentando pegar uma pequena alga. Por fim, após longos dez minutos, conseguiu achar o pequeno pacote de plástico, com o talão já amarelado. Era tão antigo, que a data tinha o espaço 19– para preenchimento do ano.
– Agora o próximo passo é achar o papel com o número do disk-banco!
E lá foi a baleia novamente. Mergulhou, saltou, girou, mas simplesmente não conseguia encontrá-lo. Irritado, Resolveu checar os papéis, um por um. Porém, com o seu peculiar tato de organização, tudo o que ele fazia era arremessar os papéis já conferidos de volta na gaveta, independentemente do que eram ou se já não tinham mais a menor valia. Chegando ao final de todos os papéis, 50 minutos depois, ele ainda não havia encontrado aquele com o número do banco e a senha do usuário.
– Cadê, Wilson, cadê?
Foi quando se lembrou: alguns anos antes, havia separado os papéis com suas senhas e guardado dentro do seu boneco do Incrível Hulk. Correu para o seu quarto, subiu na cama, subiu dela para a escrivaninha e nela se dependurou em uma prateleira (nota: as prateleiras do Chato era feitas de barras de titânio e chumbadas à parede, para evitar que ele as quebrasse quando se pendurasse, devido ao seu peso); com a mão esquerda, puxou a caixa do boneco, que caiu na cama, quicou, e se espatifou no chão.
O Chato gritou uma série intranscriptível de impropérios, e se jogou ao chão, em lágrimas. (No andar debaixo do prédio, os vizinhos acharam que o armário inteiro havia tombado, pelo barulho). No chão, o boneco estava em pedaços, membros espalhados por todos os cantos do quarto, e um bolo de papel em meio a seus resquícios longamente biodegradáveis.
– Muito bem, vamos lá.
Ele abriu um por um os documentos, contendo senhas tão estúpidas como a que protegia seu exclusivo rolo de papel higiênico reserva no banheiro, e encontrou o papel do banco. Correu para pegar seu respeitável telefone em forma de hambúrguer e discou o número. Na primeira vez, não funcionou; na segunda, também não; na terceira, checou a fiação; e na quarta desistiu.
– E agora, Wilson?
O urso o encarou inexpressivamente.
– Acho que o número não existe mais!
(Nota: o número era tão antigo que tinha sete dígitos).
– Lógico, vou ligar para o número do cartão de crédito, e eles que se virem!
Desta vez mais esperto, ele pegou uma escada, subiu até a prateleira e pegou a sua lanterna verde do Lanterna Verde. Abriu-a, soltou a sua tampa inferior, onde ficava a pilha, tirou a caixinha da pilha e pegou o seu até então super secreto e nunca utilizado cartão de crédito. Virou-o, e tentou ligar primeiro para o 0800, embora fosse destinado a cidades de regiões não metropolitanas. Logicamente, não funcionou, mesmo na terceira tentativa, e ele teve de ligar para o número pago (que já tinha oito dígitos).
O telefone tocou, tocou e por fim caiu em uma daquelas costumeiras gravações.
– Obrigado por ligar para nós. Digite o número um para…
Cinco minutos depois, ela chegou à opção 79, que era “Falar com um de nossos atendentes”, que foi o que o Chato escolheu.
– Aguarde. Estamos transferindo a sua ligação.
Quinze minutos de Pour Elise depois, o baixote já estava soltando fogo pelas ventas, mas uma moça atendeu.
– Oi, eu…
– Obrigado por ligar para o disk-banco. Digite, agora, o número de sua agência, o número de sua conta corrente com o dígito e o seu número do disk-banco.
Atrabalhoadamente, ele pegou o seu talão e começou a digitar, desesperado, os números. Colocou o fone novamente no ouvido.
– Números incorretos. Por favor, digite pausadamente…
– Às vezes eu tenho certeza de que não é só uma gravação, mas alguém querendo nos azucrinar que está do outro lado da linha…
Lento como um jabuti hipotiroideo sonolento após um almoço de domingo, ele digitou, um a um, os números.
– Números incorretos. Por favor, digite um pouco mais rápido…
E lá foi ele. Apertava um botão, dizia Votuporanga entre dentes cerrados, e depois apertava outro botão. Botou o fone no ouvido.
– Digite um para…
Três minutos depois, chegou à opção 25, que era falar com um dos atendentes. E, 10 minutos de Mozart depois, ele foi atendido, já soltando fuligem pelas ventas.
– Zhabhziana, em que posso ajudá-lo?
Era impressionante como as atendentes sempre falavam seu nome de um jeito tão estranho que era impossível entender. Talvez seja um jeito de ninguém poder fazer reclamações específicas depois.
– Eu só quero desbloquear meu talão de cheques.
– Ah, sim. Bom, infelizmente, esta senha do disk-banco não é mais válida. Eu vou transferir o senhor de novo para a tela inicial, e o senhor vai apertar, nesta sequência: 2, depois 7, depois 3, depois 5, aí 4, de novo 4, e 2. Pegou?
– Você pode repetir? – indagou ele, rapidamente pegando uma caneta e anotando na escrivaninha.
– 2, 7, 3, 5, 4, 4, 2.
– 3 ou 6?
– 3. De trindade.
– Certo.
– O senhor vai ter de digitar alguns dados, e depois ela vai te dar a senha nova. Tenha um bom dia! – disse a mulher, e transferiu a ligação.
Assim que a suposta secretária eletrônica começou a falar, o chato apertou o primeiro número. Ela tornou a falar, e ele apertou o segundo. E assim foi, até o último.
– Para obter uma nova senha do disk-banco, digite o número de sua agência, conta sem o dígito e senha antiga do disk-banco.
Ele digitou.
– Agora, digite a data de seu nascimento, com oito dígitos.
Ele digitou.
– Digite o número do seu cartão.
Ele digitou.
– Digite o número do seu prédio.
Irritadamente, ele digitou.
– Agora, digite o número do seu apartamento.
Bufando, ele apertou os dois números.
– Digite a data de nascimento da sua mãe, com oito dígitos.
Ele socou os números.
– Digite a data de nascimento da mãe do marido do segundo casamento da sua mãe.
– Ahm? Como assim? Minha mãe só casou uma vez!
– Este foi apenas um teste para garantirmos que era o senhor que estava preenchendo os dados. Estamos processando seus dados. Sua senha será ditada em poucos segundos.
O Chato tomou, então, a caneta em mãos, e se preparou para anotar.
– Por favor, anote a sua senha de quatro dígitos. ****. Por favor, anote a sua senha de quatro dígitos: ****. Obrigado por fazer parte do nosso banco. Agradecemos a sua preferência. Tututututu…
– Droga! Vou ter de ligar de novo!
Ele tomou o seu hambúrguer falante mais uma vez e discou. Colocou todos os dados necessários, escolheu diretamente para falar com uma atendente e, 20 minutos de Beethoven depois, foi atendido, já quase destruindo as últimas peças que restavam do seu boneco, de tão irritado que estava.
– Eschalavabrania, em que posso ajudá-lo?
– Oi, eu só quero desbloquear meu talão de cheques.
– Eu vou enviar o senhor para a tela anterior, e o senhor vai digitar esta ordem de números: 5, depois 3, depois 4, depois 7, e 8, e 9, e 1, e 3, e 5, e 5, e 2.
– 5, 6, 4, 7, 8, 9, 1, 3, 5, 5 e 2?
– Não, é 3, não 6.
– Onde? O primeiro ou o segundo?
– O primeiro 6 é 3.
– Aquele antes do 4?
– Isso.
– Mas você está falando da sequência numérica normal, ou dos números que você me passou?
– Dos números que eu te passei.
– Então é 5, 3, 4 no lugar de 5, 6, 4.
– Isso.
– 3 de trindade, em vez de 6, de meiameiameia, o cara do tridente?
– Isso. Vou transferi-lo agora.
E ele foi para a tela anterior, digitou a enorme sequência numérica, digitou o número da agência, cartão, conta com o dígito, senha, do dia do nascimento do Lula e da sequência de talões que queria desbloquear e, finalmente…
– Estamos processando o desbloqueio do seu talão.
– Aleluia!
– Infelizmente, este talão é antigo demais para ser utilizado. Solicitamos que o senhor vá a uma das agências em horário comercial para requerer um novo talão.
– Nãããããããããããooooooooo!!!!!!!
Nota do autor, setembro de 2021: seria cômico, se não fosse trágico. Este é o nosso Brasilzão de meus Deus. Onze anos depois, e a gente continua penando para usar os disk-bancos da vida…
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais