E, no meio da guerra civil…
Pensava eu, inocentemente, que Sorocaba, assim como o centro de Taboão da Serra, seria um lugar pacifico. Mas, ora, quem diria?, e não é que eu descubro, sem mais nem menos, que não só não é não, como que tem helicópteros por aqui? (Estou aqui há três meses e ouvi o primeiro ontem. Em São Paulo, nem dentro do Tietê você deixa de ouvir pelo menos um helicóptero por hora).
Tudo bem, eu não fui um dos muito mais informados sobre o que estava acontecendo; em verdade, eu só descobri do caos em São Paulo lá pelo fim de sábado, e, de Sorocaba, segunda à tarde, com todas aquelas ambulâncias indo para lá e para cá.
O problema não foi o descobrir, foi o táimingui. Quero dizer, quais são as chances de você finalmente ter tirado um agorafóbico de casa depois de cinco anos de trabalho duro e os malditos do PCC resolverem atacar a cidade? Nulas, não é?
Pois bem, eu estou dentro do ponto fora da curva, sou a excrescência nos gráficos, o Murphético maldito que sempre muda a média. E pra pior.
Bom, talvez não tenha sido eu, talvez tenha sido simples azar do meu amigo agorafóbico, mas enfim… Estou me enrolando. É melhor começar a contar logo.
Era segunda-feira e lá estávamos eu e o agorafóbico na casa dele (o chato, por algum milagre, não estava me pentelhando. Estava tentando subornar alguém para conseguir um visto para ele para Cuba, ainda fugindo da Marla), discutindo por que demônios (e eles eram culpados, também, de acordo com ele) ele não podia sair de casa. No final, era o medo de falta de proteção, e quando eu disse que lá fora era exatamente igual à casa dele, mas que, em vez de quatro simples paredes, havia uma bola enorme de trocentos quilômetros de espessura envolvendo a terra, capaz de impedir qualquer coisa (não, eu não mencionei os buracos na camada de ozônio nem o fato de que ela era feita de gás… Uma coisa por vez, gente!) de entrar.
– Mas tem certeza de que não entra nada?
– Não. Não entra mesmo. Nada, nada, nada.
– E os OVNIS?
– São falsos. Vai dizer que você acredita mesmo naquele boneco do fantástico?
– Mas e como o sol entra?
– Ahm… É uma esfera de vidro. Beeeem grosso. Praticamente um diamante.
– Ah, sim… É por isso que tá tendo o efeito estufa, então?
– Isso. Exato!
– Ah, tá… Então… Se você diz… Mas lá fora não é muito aberto?
– Me diz o quão aberto pode ser, se você tá rodeado por uma esfera monstruosa de vidro?
– É, tá certo.
– Imagine você como uma minhoca numa estufa e você vai entender. A estufa é grande? É. Mas a minhoca tá segura lá dentro, não tá?
– Nossa… É mesmo… É um modo novo de se ver o mundo, ora vejam só… – comentou ele, imaginativo, os olhos brilhando.
Eu me meto em cada uma…
Por fim, depois de muito, mas muito esforço, conseguimos descer as escadas e, finalmente, sair do prédio, para que ele visse a luz do sol de verdade depois de 15 anos de confinamento (sério, depois dessa eu deveria ganhar o prêmio Nobel da psiquiatria!).
– Olha só, o céu é azul! – exclamou, como se nunca tivesse visto o céu (bom, tudo bem, fazia dez anos que ele não olhava nem pela janela e tinha medo de ver televisão, então…). – E olha, borboletas! Elas ainda existem! Achei que fossem só sonhos!
Ele estava tão deslumbrado com tudo que não conseguia parar de olhar. Era pior do que criança quando acaba de descobrir uma coisa nova e fica repetindo até a exaustão. Na verdade, parecia mais aquelas crianças que ganharam o nintendo 64 no vídeo¹…
Foi quando, de repente, começaram as sirenes e os helicópteros a sobrevoar tudo. Ele, todo impressionado, apontando para os helicópteros e berrando: Coisas enormes de metal que voam! Coisas enormes de metal que voam! E olhando pras ambulâncias e dizendo: Olha, é daqui que vêm os barulhos que eu escuto de noite! E apontando para os policiais e dizendo: Olha só! Eles também fazem barulho!
E quando, do meio do nada, um carro de assaltantes (uma Brasília amarela) passou pela rua, três caras do lado de fora das janelas metralhando os policiais, os quatro carros da PM logo atrás, no maior pau, atirando de volta, o helicóptero soltando cordas com pessoal da SUATI (Serviço Universal Atualmente em Trabalho Indisponível) descendo a ameaçando matar, o agorafóbico começou a berrar de emoção, achando que era um filme, que era só diversão, achando que a maldita camada de ozônio protegê-lo-ia de tudo.
Então, vieram os tiros em direção a nós. Tudo que eu pude dizer, no maior estilo roliudiano, com direito a câmera lenta e rotação 4D 1860 graus, foi:
– Eu quero a mamãe!
(Não, não foi “Abaixa!”. Eu sou egoísta demais pra isso, aparentemente).
Então, capotamos os dois no chão e os carros passaram voando pela rua.
Pouco tempo depois, só deu para ouvir as sirenes das ambulâncias, dos carros de polícia e dos bombeiros, e trocentas pessoas sendo levadas para o hospital, enquanto um bando de maloqueiros puxavam as cordas do helicóptero tentando batê-lo contra um prédio ou puxá-lo até o chão, como se fossem órquis puxando um olifante.
Quando eu me levantei, ainda um tanto abalado pelo choque (quando descobri que um tiro tinha passado a dois milímetros da minha cabeça, eu cheguei à conclusão de que alguma utilidade eu ainda vou ter no mundo, nem que seja destruí-lo), vi o agorafóbico em posição fetal, chorando feito louco. Quando eu consegui fazê-lo abrir os olhos, ele olhou para mim, depois para o céu, um pouco mais tranqüilo.
– O que foi? Não precisa ficar com medo – eu tentei tranquilizar. – Tá todo mundo bem, olha só em volta.
Olhar paredes que pareciam mais queijo suíço não ajudariam em nada, mas, realmente, estavam todos vivos e intactos.
Um pouco sacolejante, ele se apoiou para levantar, mas, quando olhou para o chão…
– Ai, meu Deus! – berrou e pulou. Depois, quando caiu no chão, pulou de novo, e de novo, e de novo, e tornou a pular até achar um suporte que o impedisse de tocar o chão. E, mesmo quando agarrado a um tronco de árvore de 5 metros de altura, ainda ficava se contorcendo de medo do chão.
O agorafóbico havia se tornado um pisofóbico. Depois de ser arremessado contra o chão para se proteger das balas, havia desenvolvido um medo mortal do chão.
Por fim, desisti dele e voltei para casa, onde era mais seguro. Vez por outra eu ainda vejo o pisofóbico tentando subir em prédios cada vez mais altos.
Acho que era por isso que o Quingue Congue subiu naquele predião lá…
Nota do autor, setembro de 2021: pois é, o chato tinha toda uma constelação de amigos esquisitos. Apesar disso, realmente ocorreram algumas destas cenas (acho que a perseguição policial) em Sorocaba naquele ano, mas foram longe da minha casa e eu só fiquei sabendo pelas notícias. E não, eu não conseguiria desviar das balas igual ao Neo.
¹ (Nota de 2021) É possível que este vídeo ainda exista.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais