“Eu ainda não sou médico!”
Um dia, eu, o chato e o seu amigo hipocondríaco fomos passear aqui por Sorocaba, mais porque a gente não tinha realmente nada melhor para fazer (eu estava cansado de ouvir ele reclamar do meu apartamento) do que qualquer outra coisa. Então, descaradamente matando a minha “Área do Aluno”, eu fui com eles para o Esplanada Shopping, onde fomos almoçar.
– O problema do shopping aqui é que é muito caro… Pelo menos, pra quem tá acostumado com o Butantã… Mas tudo bem, olhaqui… O café daqui, Café do Ponto, é o melhor – mostrei eu, conforme andávamos. – E aqui… Este restaurante, apesar de ser do Chitãozinho e Xororó, é bom… Tem uma carne de avestruz… Nossa, nunca provei nada tão bom!
– Avestruz? – indagou o chato, torcendo o nariz.
– Avestruz não vai dar gripe aviária? – perguntou o hipocondríaco, olhando incerto pros lados. – Acho que sim… – e começou a espirrar.
– Não, que eu saiba, não – respondi eu. – E o estranho é que a carne não é branca, é vermelha… Por que vocês não provam?
– Avestruz?
– E pegar gripe avi… Tchô! Ária?
– Ah, esquece… Tem um por quilo japonês aqui, vamos pegar aqui logo duma vez…
– Que tipo de pessoa come avestruz? Eu quero dizer… Não é algo que dá pra criar no quintal…
– Mas não dá pra pegar aquela doença do salmão comendo aqui?
– Ai, meu Deus! Não tem mais doença do salmão! E se você não tá contente, come um beirute ali do lado!
– Uhm, beirute… De beicom, picanha, rosbife e filé mignon… Será que vem tudo isso junto ou tem que escolher entre eles?
– Não sei, não dá pra pegar cisticercose com carne de porco? E doença da vaca louca? Febre aftosa?
– Febre aftosa não passa pra humano… E se você tá com tanto medo, não come!
– Quer dizer, deveria estar escrito ou ou ou e. Se você quer dizer um entre quatro, é ou. Se você quer dizer os quatro, é e. O que será que eles querem dizer?
– Mas eu não tô com medo! É que…
– Eu vou pegar aqui. Vocês que se virem.
No final, eu peguei a comida japonesa no por quilo (que estava muito boa, por sinal), enquanto o chato discutia no caixa com a atendente sobre o beirute e o hipocondríaco, depois de não se decidir por absolutamente nada, sentava-se à mesa e começava a se coçar feito louco.
– Mas, minha amiga, veja bem… Está escrito beicom, picanha, rosbife e filé mignon. Isso quer dizer que vêm os quatro! Não que você tem de escolher, senão seria ou.
– Não, não, este e serve para indicar quais são as opções. Beicom e picanha e rosbife e filé mignon. Depois o senhor escolhe uma delas!
– Mas se fosse para escolher só uma, seria ou!
– Mas é uma questão de bom senso! Que tipo de pessoa come um beirute com tudo isso? Nem cabe no pão sírio!
– EU como um beirute desses. E deveria estar escrito ou!
– Mas, meu senhor, é uma questão de bom senso!
– Não quero nem saber. Eu quero o meu beirute completo!
– Com qual tipo de carne?
– Todos eles! – exclamou o chato.
A discussão prosseguia, e eu voltei para o Rip (apelido de hipocondríaco).
– Cara, eu acho que tô com lepra.
– Tem alguma parte do corpo que você não sente e que caiu recentemente?
– Não… Não que eu saiba.
– Então você não tem lepra.
– Você é médico, né?
– Não, eu sou um estudante de…
– Será que você podia então me dar uma ajuda? Eu estava lendo sobre lupus um dia desses…
Sempre lupus, pensei eu. Nunca tinha visto tanta gente falar tanto de lupus em tão pouco tempo! No hospital, na tevê, na internet…
– … E eu descobri que eu tenho alguns dos sintomas! Olha só, eu to com febre, tá vendo, e dores no corpo e falta de fôlego e dor nos músculos…
– Você não tá com febre. Só tá com calor. E é claro que você tá com calor, acabou de vir até aqui de bicicleta! Subir toda a Uóxintom Luis de baiqui não é fácil… Por isso que seus músculos estão doendo. E isso aí é sintoma de febre… Pra ser lupus, você precisaria ter baixa dos leucócitos, das plaquetas, inflamação nas juntas, sirosite, manchas vermelhas pelo corpo…
– Continua falando – disse o Rip, anotando tudo em uma caderneta pra usar futuramente. – E depois diz que não é médico!
– Mas eu não sou! E quer parar de anotar os sintomas?
– O quê? É só pra saber, caso eu venha a ter eles, que eu tenho mesmo lupus!
– Mas o meu beirute tem que ter tudo que tá escrito! Tá escrito E, não OU!
– Olha aqui, eu sei o problema que você tem.
– E depois diz que não é médico!
– E eu não sou, caramba! Eu não tenho nem CRM! Eu tive sete dias de aulas, só!
– Ah, falando nisso, eu te mostrei minha cicatriz de operação de remoção do rim?
– Viu, é disso que eu tô falando… Você tem hipocondria! Ou Síndrome de Münchausen, pode escolher…
– O que é isso?
– É uma doença de verdade que você tem. Vou te emprestar um livro depois, você dá uma olhada. Você vai ver.
– Uau, nunca ninguém conseguiu diagnosticar tão rápido a minha doença. E sem exames! Você é O médico, cara!
– Eu não sou médico!
– Tem que vir com os quatro tipos de carne! É o MEU beirute e eu quero os QUATRO tipos de carne!
– E por que tá andando de jaleco, então?
– Porque você pediu pra ver como era!
– Mesmo assim…
– Precisamos de um médico! – alguém berrou no meio da multidão.
Todos pararam, os garfos no meio do ar, arrotos congelados no tempo, e viraram os rostos para o centro do salão, onde um homem gordíssimo segurava a garganta de todos os modos que podia, indo do vermelho ao roxo, lutando para respirar. Em sua mão esquerda, uma coxa de frango quebrada ao meio e semi-comida.
– Tem algum médico aqui?
– Aqui! – berrou o Rip, e todos olharam pra mim.
– Mas eu não sou médico! – retruquei.
– E por que o jaleco? – todo mundo perguntou.
– Eu sou só estudante! De primeiro ano! Eu só tive sete aulas!
– Ele me curou! – gritou o hipocondríaco. – Ele descobriu a minha doença sem qualquer exame! Ele é um gênio!
– Vai ajudar ele, pô! – uns berraram. – Deixa de ser metido! Ajuda o cara! Ou será que tem que marcar hora no consultório?
– Mas eu não sou médico! – respondi, lutando para não gritar, o que foi em vão; logo um mar de mãos me empurrava até o cara gordo, com terno e de bigode, parecendo muito aquele tio do Réri Poter.
Em pouco tempo eu estava do lado do homem caído no chão, vendo o que eu tinha de fazer.
– Entuba ele! – exclamou o chato, tendo esquecido completamente do beirute. – Lembra o que você me falou que o Girafa te ensinou?
– Mas ele não foi atropelado! E eu não tenho tubo! E eu não sei entubar!!
– Pega uma bique! – berrou alguém.
– Eu tenho! – exclamou outro.
– Mas não adianta entubar! – exclamei. – Ele só tá engasgado – murmurei pra mim mesmo. – Acho que…
Copiando um negócio que aprendi na televisão, eu fiz a manobra de Heimlich (raimilique) de um jeito um tanto trôpego, e quando vi que não estava dando certo mesmo, dei um soco bem forte no estômago do cara, que não só desengasgou, cuspindo o osso com tudo no Rip (“Tô cego! Tô cego!”), como vomitou um pouco de comida no chato, tossindo feito louco.
Depois disso, foi a maior confusão; o ex-engasgado tentando me agradecer; a turba inteira gritando que eu era um super-médico e eu falando que não tinha tido nenhuma aula direito, ainda; o chato reclamando da comida em sua camisa (curiosamente o cara havia comido quatro beirutes, um de cada tipo); o hipocondríaco berrando que estava cego, que tinham perfurado seu cérebro, que tinha um tumor, que ia desenvolver tétano, AIDS, sífilis e síndrome de Reye (que só afeta crianças, notem, depois de uma gripe, em casos especiais).
Não adiantou nada. Depois de um tempo, eu desisti de berrar que não era médico, aceitei os cumprimentos de todo mundo, aceitei que me pagassem o café, e não reclamei quando me levaram para longe dos dois bebezões berrando no meio da praça de alimentação, um dizendo que estava morto, o outro dizendo que ia ser digerido vivo pelo ácido dos dejetos em sua camisa.
Nota do autor, agosto de 2021: se não me engano, em algum dos concursos literários do meu clube (A Hebraica), esta crônica ficou na menção honrosa. Lembro que parte dela (a do cara engasgando) foi lida teatralmente por um ator e foi muito engraçado.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais