Lotéricas Cháticas
Certo dia (um sábado, notem, porque é no sábado que corre a loteria) fomos eu e o chato para uma lotérica, gastar dinheiro jogando. Aliás, ele foi; eu peguei o um e cinquenta e preferi gastar em um café. Era melhor, se querem saber. Ganhar na mega-sena era uma chance em 40 bilhões, algo assim. Tomar um café era uma chance certa de prazer garantido.
Enfim, lá estava eu ao lado dele, olhando para os lados, ele fazendo vários cálculos para ver como apostar.
– Olha, se colocar datas de aniversário ou placas de carro adiantasse em alguma coisa…
– É por isso mesmo que eu tô somando os números! – respondeu ele, espertamente. – Tá vendo, eu tô pegando todos os números relacionados a mim, somando os dígitos até dar um número que sirva aqui…
– Uhm, tenta a Marla, que tal? Os números do nome dela… Ahm…13 com um com… 18 com… 12 com um… 45… O dia em que vocês vão casar… 25 com 5 com 20 com 6… 56… Ahm… A idade dela… Quantos anos ela tem?
– Sei lá eu! Olha as perguntas que você me faz!
– Como que você vai casar com ela e não sabe nem a idade dela?
– Olha, convenhamos aqui entre nós… – disse-me ele, puxando-me com seu braço (a ideia foi pegar no meu ombro, então ele saltou, se esticou inteiro, se agarrou em mim como uma criança e quase me levou ao chão quando eu não aguentei seu peso). – Ninguém nunca sabe a verdadeira idade de uma mulher. Tudo que você sabe é uma imagem. Aliás… Tudo que se sabe do mundo é uma simples imagem. É o que os nossos sentidos, ou, no caso, a boca delas, nos diz. E muita plástica, obviamente. Por isso mesmo, pra que eu vou me importar em descobrir a idade dela, se muito provavelmente ela não vai me dizer a verdade e/ou pode disfarçar?
– É, agora que você falou…
– Do mesmo jeito, pra que eu vou querer saber como é o mundo atrás da matriz se ela me engana tão bem?
– É, você tem seu ponto… Podia ter escrito praquele livro, Bem Vindo ao Deserto do Real…
– Pra você ver, eu tenho futuro como filósofo! – exclamou, animado. – Pena que eu tenho preguiça…
– É assim que o Brasil não vai pra frente… Orgulhai-vos, brasileiros! – anunciei para ninguém em especial, todo mundo me olhando com cara de: “Olha, um louco!”. – Uni-vos, preguiçosos! Para a preguiçolândia! Para a construção de uma pátria de preguiçosos! Terra Papagalli!
– Quer parar com isso? – murmurou o chato, me cutucando. – Você tá me envergonhando!
– E o número inumerável de vezes que você me envergonhou?
Ele ia mesmo responder a isso, estava até com o dedo levantado, mas a moça do caixa o chamou e ele teve de ir.
– Vai sair… Seis reais – disse, com um humor invejável para quem trabalhava atrás de um balcão daqueles (bom, vejamos, ela trabalhava sentada em uma sala com ar-condicionado, recebendo dinheiro e vendo os outros, do lado de fora, suando, arriscando dinheiro em algo que nunca iriam ganhar. Quer dizer… É o nível máximo de entretenimento passivo sadístico!)
– Seis reais jogados no lixo… Seis reais boiando no mar… No dia seguinte, o bicho o resultado vai olhar… E, pra variar, ele vai rodar… – pseudocantorrimei.
– Quer parar??? – semigritou o chato.
– Ei, posso te perguntar uma coisa? – perguntei para a atendente, enquanto o meu companheiro guardava o troco em sua camiseta ridiculamente apertada.
– O quê? – foi a resposta animada.
– Vocês da lotérica têm direito a um jogo por dia ou algo assim?
– Como?
– Ué, o pessoal do Méquidonaldis tem direito a um hambúrguer por dia… O pessoal de cafeteria, um café… De sorveteria, quanto sorvete quiser… Vocês têm direito a um jogo por dia, aqui? Um bilhete qualquer? Surpresinha?
– Não… Não temos… – disse ela, verdadeiramente desapontada.
– Como que pode?
– Mas não pode… – retrucou o baixote. – O dinheiro daqui vai pro concurso, não é?
– Você quer dizer, pro governo – corrigi.
– Mas enfim, 50% dele vai pro concurso, supostamente… Se todos os funcionários da lotérica tivessem direito a um jogo por dia e não tivessem de pagar por ele… Ia ser injusto! Muita gente concorrendo sem pagar!
– Eu devo discordar – disse uma voz atrás de mim, e eu logo previ que problemas estavam por vir…
Faíscas literalmente voaram quando o chato e o rabugento mais uma vez se encararam, um alto e magro, o nariz adunco, calvo e as costas meio tortas, o outro baixo e rotundo, nariz estranho, óculos e, claro, careca.
– O que você está fazendo aqui? – perguntou rispidamente o meu fiel Sancho Pança.
– Simplesmente exercendo o meu direito de jogador em uma atividade esportiva legalizada. E, se vocês me permitem…
– Não permito! Não permito!
– …Exercer o meu direito de livre expressão e opinar sobre o caso…
– Não! Sem divre de lireito de exseprão!
Ninguém entendeu o que ele disse, de modo que o seu arqui-inimigo prosseguiu.
– Eu realmente acho isso ridículo. Todos os funcionários da lotérica deveriam ter o direito de apostar! Um bilhete por concurso, pelo menos! Não acham? – perguntou, e ganhou simpatia imediatamente das balconistas. Parecia que ele queria, acima de tudo, além de chamar a atenção, contradizer o chato. – Meus amigos! – anuncifalou, os braços estendidos, olhando para a multidão de apostadores irritados com a demora. – Eu tenho um sonho!
Sim, analogias demais ao Martin. Eu sei. É que ele foi um grande amigo meu…
– Um sonho no qual funcionários de lotérica têm direito a um jogo por dia! Do mesmo modo que padeiros têm direito a pão e fritadores de hambúrguer podem pegar umas batatinhas no final do turno!
O chato se contorcia de raiva. O engraçado era que ambos eram, normalmente, extremamente irritados para qualquer pessoa em geral, mas, quando juntos, lutavam como um texugo e uma raposa para ver quem conseguia mais atenção (o chato era o texugo, antes que perguntem, e não preciso nem dizer por quê).
Isso conseguiu uma certa aceitação (o discurso, não a semelhança animalesca).
– Não podemos mais nos deixar ser explorados! Pela mais-valia, tudo que nós ganhamos são míseros trocados, enquanto o produto do nosso esforço, do nosso trabalho, do nosso suor, fica nas mãos de burgueses!
No clima de eleição e desorientação (e falta de liderança) de hoje, aquilo conseguiu ampla aceitação.
– Burgueses como ele! – gritou, como um padre louco acusando alguém de ser possuído pelo demônio, enquanto apontava para o meu amigo. – Ele, que vem se aproveitar do trabalho de pessoas inocentes como nós, como aquela moça trabalhadora, usar o nosso trabalho duro para o seu proveito! Para depois ganhar em um concurso todo o nosso dinheiro!
A turba imediatamente se revoltou contra nós, ninguém percebendo o fato de que todos lá (exceto eu, que não estava apostando, e as funcionárias, que não tinham nada a ver com o pato) estavam se aproveitando do trabalho dela para tentar (ênfase no tentar) ganhar em um concurso o dinheiro de trocentos brasileiros.
– Pra rua com eles! Digam não aos burgueses!
Comandando a horda, o rabugento fez com que nos erguessem no ar (eu ainda tive a oportunidade de berrar “Tô voando, tô voando!”) e nos arremessassem para fora da lotérica, no calçadão da praia.
– E nunca mais voltem, criaturas do mal! – ordenou. – Agora vamos, companheiros! Vamos voltar ao nosso jogo!
– Isso é um absurdo! – gritou o chato, de volta, massageando a bunda (eu, como sou imortal¹, estava intacto, meramente esfregando um ou outro grão de poeira da roupa e pegando as minhas moedas para comprar o café, completamente indiferente ao que acontecia entre os dois animais silvestres da fauna inglesa). – Você vai ver, eu vou me vingar, seu velho rabugento! – anunciou, o punho em riste.
– Cansou? – falei, por fim.
– Eu não me conformo com aquele cara! – continuou, incansável, quase roxo de raiva.
– Engraçado que ele não é rabugento de verdade…
– Ah, é sim… Você nunca viu ele não chamando a atenção. Aí ele é rabugento. Um dia, a gente se encontrou na sauna…
Simplesmente parei de ouvir, a partir disso. Continuei andando em direção ao café, do outro lado do calçadão, pensando em quem seria o próximo ganhador da mega-sena. O chato, claro, veio atrás.
– Ué, cadê o meu papel com a aposta?
Ele olhou para trás, e o rabugento o sacudia na mão, sorrindo sadisticamente como nunca.
– Malditooooooo! – berrou, mas nada podia provar que o papel era dele, e nem com uns mil seguranças ele conseguiria pôr os pés de volta naquela lotérica, de modo que, mais inconformado do que nunca, foi comigo para o café, tentando lembrar os números.
Em São Paulo, de volta, mais tarde, ele ainda tentou jogar, com os números que achava que tinha jogado a primeira vez. Era 56 ou 55? E era 45 ou 54? Ele não sabia…
Ironicamente, no domingo, descobrimos que um apostador de Peruíbe ganhara os 9 milhões da Mega-sena. O chato está se remoendo até hoje por causa disso…
– Eram os meus números! Os meus númerooooooos! Nota do autor, setembro de 2021: como todo bom adolescente, naquela época eu estava cheio de ideias filosóficas, revolucionárias e, por que não, algo anarquistas. Vocês podem ver pelo discurso do Rabugento (que, na realidade, é só o cúmulo do absurdo, mas enfim…).
¹ (Nota de 2021) Eu logicamente não sou imortal, mas é notável que eu vivia me estrebuchando nas atividades esportivas e levantava sem qualquer lesão, o que virou motivo de piada entre meus amigos, a ponto de me empurrarem só para ver se algo aconteceria. Por sinal, não tentem isso em casa, crianças, pode machucar, mesmo!
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais