Na casa do Patriota
Nota do autor, abril de 2021: achei importante colocar esta nota antes de começar, porque esta crônica tem um forte contexto político. Na época, estávamos descobrindo as denúncias do Mensalão, durante o primeiro governo Lula, e muito próximos da eleição que iria reelegê-lo. Infelizmente, revendo esta crônica hoje, consigo com facilidade associá-la a absolutamente qualquer outro presidente que veio depois – seja Dilma, seja Temer, seja Bolsonaro. Portanto, caro leitor, tente vê-la como um retrato de Dorian Grey atemporal, fazendo as devidas alterações, e com certeza aproveitará mais. A ideia, assim, é trabalhar a decepção que temos com todos os políticos que mudam durante o governo.
Sábado de sol… Aluguei um caminhão…
Tudo bem, não foi exatamente assim que tudo começou. Mas que era um dia de sol, era.
Certo dia, como eu não tinha mais o que fazer, assim como o chato, já que estávamos ficando sem opções no clube por falta de espaço, vaga, dinheiro, habilidade e/ou beleza, resolvemos ir visitar o nosso amigo Patriota, o qual até então tinha ficado esquecido nas areias do tempo desde a última vez que o vi, em um bar, afogando as mágoas em uma Pirassununga Meidin Brasil pela derrota da copa em 98 (de fato, ele chegou a me ligar – 22 vezes – quando nós ganhamos a copa de 2002, mas isso não conta).
Por que motivos fomos, exatamente, não sabíamos; talvez porque o chato não tinha realmente o que fazer, talvez porque eu estivesse curioso sobre os efeitos da crise política sobre o nosso companheiro – que se mostraram fatais, diga-se de passagem.
De qualquer modo, quando chegamos à casa do Patriota, fiquei impressionado; representando o verdadeiro Brasil, ele sempre vivera em um casebre de madeira sem eletricidade nem comodidade de qualquer tipo, mas no momento vivia em uma mansão gigantesca, melhor que um hotel cinco estrelas, melhor até mesmo que aquele da África, e com mais coisas que a Neverléndi do Maicou (o qual, comentei com o chato, havia sido considerado inocente. O que não prova nada, retrucou ele).
Pelo que entendemos pelos vizinhos, o Patriota havia resolvido seguir tanto os hábitos quanto o palavreado da atual “maior ideologia política da atualidade no momento da atual conjuntura sócio-político-econômica em um estado crucial de satisfazência das necessidades pessoais auto-ocasionadas pelo ego dos nossos companheiros”. Entendeu? Nem nós.
Como se toda essa história mais a casa não fossem suficientemente borradoras-de-calças, seguiram-se ainda inúmeras coisas assustadoras dignas de uma história de terror de… Qualidade duvidosa. No máximo. Mas ainda assim é minha tarefa contar.
A primeira coisa assustadora (na verdade eu fiquei até um pouquinho feliz, apesar da destruição da natureza, claro) foi ver a antiga estrela vermelha queimada no chão, apenas um borrão preto no meio do jardim verdinho que nem dólares.
A segunda foi ver a bandeira do Brasil, a maior do mundo, com vinte metros de altura e trinta e cinco de largura (eu não sei como aquela coisa voava. Sério mesmo), toda rasgada, pichada e amarrotada, jogada no chão como se não fosse nada além de trapo.
O chato achou um absurdo. Eu não opinei. É sempre melhor não opinar.
Depois que transpusemos o portal de entrada (isso é uma frase de efeito!) encontramos, para nosso medo, todos os quadros com os retratos dos antigos presidentes e líderes políticos do Brasil completamente destruídos, pichados, rasgados, depredados (incluindo aí a pintura rupestre do chefe Boi-sentado, seu irmão do meio No-meio-da-estrada e o caçula Pára-o-trânsito, o que não passava de dezenas de riscos em uma pedra, e umas telas um tanto comprometedoras de D. Pedro II).
O teto, antes pintado com um céu de estrelas como o da bandeira, havia sido quebrado em vários pedaços; as estátuas de FHC, Collor, Deodoro e Getúlio, feitas de bronze ou mármore, esmigalhadas em dezenas de partes; e os bonés, as camisetas, outras peças de roupa como a cueca samba-canção especial do Gil, dezenas de suvenires e milhares de outras coisas ainda mais grotescas dignas de patriotas jogados no chão, como se preparadas para tocar fogo, até mesmo com querosene em cima.
– Que absurdo! – pude ouvir. Não comentei.
O cenário era aterrador, e nós gritamos o nome do Patriota (o qual era, até onde se sabia, José Patriota) por toda a casa, sem obter lhufas. Passamos pela cozinha (só com produtos brasileiros e eletrodomésticos da Zona Franca de Manaus vendidos em trocentas prestações pelas Casas Bahia), pelo banheiro, pelo quarto um (cujas fotos, bandeiras, esculturas e tudo mais haviam voltado ao pó), pelo quarto dois (igualmente empoeirado), três (idem), quatro… E não encontramos viv’alma. Só uma pista; o livro O Príncipe, de Maquiavel, e O Rei, dedicado pelo Patriota ao “mui estimado Presidente do Brasil”, abertos na parte de “Como manter o posto de soberano” sobre uma mesa, ao lado de um pedaço de papel, um copo em cima, uma tentativa de um O e um lápis quebrado jogado no chão.
– Elementar, meu caro Chato – comentei, afinal.
– Elementar o quê?
– Não sei, mas seja o que for, é elementar. E eu sempre quis dizer isso.
Continuamos seguindo escadas acima (cujas paredes haviam sido pintadas com cenas de cartões postais do Brasil, o chão parecia areia e sua forma circular contornava um cristo redentor – tudo isso completamente destruído, como o resto da casa) para não encontrar ninguém nos quartos, apenas um atestado de óbito de uma cadelinha de quatorze anos (chamada Michele), o que não ajudava em absolutamente nada na elementariedade do caso.
Sobrou, por fim, o sótão (o que eu não sei o que fazia naquela casa, já que nenhuma casa brasileira tem sótão, só aquelas dos Estados Unidos e da Europa, para esconder cadáveres e bombas atômicas).
Corremos (na medida do possível, porque o chato era chatamente lerdo e ainda tinha pés mais chatos que os meus) e abrimos a porta, para encontrar a cena mais grotesca do dia.
Primeiro, um quadro de tinta a óleo do Lula, de quando ele era muito novinho, muito novinho mesmo. Segundo, um facão caído no chão. Terceiro, um pano caído um pouco mais distante do facão. E, quarto, o corpo de um homem muito semelhante a Lulla, mas com a face mais destruída, mais velha, repleta de infinitas rugas, em uma expressão tão maligna e monstruosa que o Chato quase vomitou.
Era o patriota. Em seu fanatismo havia se tornado o Lula – mas, quando percebeu que, na verdade, o Lula era o Lulla, havia decidido que era o Lula ou ele. E seu patriotismo não aguentou.
A vergonha do Brasil havia tomado a sua vida.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais