Na Praia com o Chato
Pela primeira vez em muito tempo, eu fui para o apartamento do chato em Peruíbe, ver como era; nós já estávamos na praia há um tempo, mas era sempre ele quem me visitava, nunca o contrário. Então, resolvi quebrar o padrão.
– Vou pedir comida – disse ele, ligando para trazerem comida chinesa (sei lá eu de onde ele tirou esse restaurante aqui em Peruíbe, mas enfim…).
Aproveitamos para, enquanto a esperávamos chegar, ficar de frente para o ar-condicionado; o calor estava de matar, literalmente.
Quando o interfone tocou e a comida chegou, o porteiro falou que o entregador não poderia subir.
– Mas como que ele não pode subir?
– É por segurança.
– Mas de que raios me serve a droga da entrega de comida se eu não posso receber na minha porta? Se eu tenho que sair do meu apartamento de qualquer jeito, pra que eu vou pedir entrega?
– Não sei, o problema é seu, não meu. Se o senhor não descer em cinco minutos, o moço disse que vai embora.
– Mas que absurdo! – trovejou o chato e desceu para pegar a comida.
Quando acabamos nosso almoço (notem que a iguaria do dia era Yakissoba com o macarrão duro, o que fazia o maior sucesso lá. Será que ninguém se tocou que o cara simplesmente pegou um miojo cru, jogou molho quente por cima, e o que amoleceu, ainda bem, o que não amoleceu, azar?), o chato anunciou que tinha de ir comprar um remédio para a sua mãezinha.
– Tarja preta? – indaguei eu, impressionado.
– Mamãe tem sérios problemas de estresse. Se ela não tomar isso aqui de duas em duas horas, fica doidinha.
Ainda impressionado com aquilo (o remédio estava a meio passo – à frente – do Haldol), eu segui com ele para a rua e seu calor infernal e sol torrante.
Em questão de segundos, minha camiseta estava mais molhada que o próprio mar. Já a do chato, parecia uma água-viva.
– Mas que calor infernal! – reclamou. – Meudeusdocéu!
– Isso é um absurdo.
– Essa frase é minha, não rouba!
– Meu Deus, como pode tá tanto calor?
– Também, a gente saiu pra andar às duas da tarde…
– Ideia de quem??? Ehm???
Suspiramos e continuamos a andar.
– Não pode ser, simplesmente não pode ser… Deve ter gente debaixo da terra! Milhares e milhares daqueles bichos da Máquina do Tempo do Eidgi-dgi-uéus…
– O filme é melhor – comentou o chato.
– Também acho. Mas mesmo assim, deve ter milhares daqueles bichos subterrâneos escondidos em cavernas, tacando carvão ou lenha ou álcool nas caldeiras…
– Petróleo, queimam os lençóis de petróleo.
– Pra estar tão quente! Você já tentou pisar no chão descalço?
– Já. Meu dedo grudou no chão e não queria soltar. Fiquei com uma queimadura de terceiro grau. Um absurdo.
– Acho que tá queimando até de chinelo! E o meu chinelo é branco!
– Ainda bem que não é de palha…
Finalmente chegamos à farmácia, onde entramos com prazer; tinha um ventilador gigante no balcão.
– Olha essa receita… Você já reparou que é impossível ler letra de médico?
– É pra eles se sentirem importantes. Se ninguém entende o que eles escrevem, eles se sentem soldados na segunda guerra, com mensagens indecifráveis.
– Um absurdo…
– Eu não lembro onde eu vi que nem os médicos entendem o que eles escrevem.
– Eu que não quero ser operado… Acho que tenho mais chances de vencer o câncer sozinho do que sendo operado por um desses… Indecifráveis. Você não vai fazer isso, né?
– Você já viu minha letra. Quando eu tô inspirado, só o computador é mais legível.
– É boa demais pra ser de médico… Você não vai ser um bom médico…
– Brigado! Cê tem noção do que você tá falando?
– Olha, tem um banco ali!
– E daí? Você vai tirar dinheiro pra me pagar o que deve?
O chato me lançou um olhar de: “Que, você acha que eu sou trouxa?”.
– Não! Claro que não! O banco tem ar-condicionado. A gente pode ficar lá até o sol baixar!
– O banco fecha às quatro. O sol vai até as oito e meia!
– Tudo bem, a gente fica lá até a temperatura baixar um pouco. Depois, a gente pode voltar com a sombra. Vai ter mais sombra mais tarde.
– Pelo menos, é uma boa ideia.
Nós entramos no banco Itaú, onde por sinal uma amiga minha trabalhava, e ficamos sentados em umas cadeiras que tinha lá (o chato enrolou o atendente por quase uma hora e meia perguntando sobre poupança e flex prev e todas aquelas coisas), até o guarda pedir que a gente saísse e fosse para outro lugar, porque havia clientes que queriam usar as cadeiras.
Então, nós nos levantamos e fomos sentar em um canto, perto dos caixas eletrônicos.
– Quer dizer, então, que em seis anos você vai ser um médico?
– É.
– E você vai pra Sorocaba?
– Até segunda ordem…
– E você vai me abandonar?! – chorou o chato.
– O quê?
– Eu sabia que ia ser assim! Sabia! Ia chegar um dia que você ia me virar as costas, ia me esquecer, ia embora pra sempre!
– Ah, pelamordedeus!
– É verdade! Você vai me esquecer! Nunca mais vai falar comigo!
– Mas eu…
– Você vai me abandonar!!! – esperneou ele.
– Mas eu vou ter telefone!
– Não é a mesma coisa! Não é! E você odeia telefone!
– Cartas!
– Você não vai ter tempo de me mandar cartas! E é pior ainda do que telefone!
– Que que você quer que eu faça?
– Não me abandoneeeeeee! – chorou, e todos olhavam para nós.
– Tudo bem, tudo bem, vamos fazer assim… Você pode ir me visitar quando quiser, tá certo?
De repente, eu percebi o que eu tinha falado, e eu juro que os quatro cavaleiros do apocalipse passaram pela minha frente.
– Sério?
– Bem, é… Eu… Ahm…
– Então você não vai me abandonar! Você vai ver! Todo fim de semana, eu e minha mamãe vamos pegar as nossas Darley Havidson – ele tinha a versão paraguaia – e vamos visitar você! Aliás, sexta de noite! E voltamos segunda de manhã!
Ai, meu Deus…
– Onde fica Sorocaba?
– Todo mundo fala que fica perto de Campinas…
Que que eu fiz?
– E Campinas?
– Uns cem quilômetros de São Paulo. É o que dizem.
E por que você me deixou fazer isso?
– Cem? Mas que absurdo!
Por favor, me faz entrar em outra faculdade… Qualquer uma!
– Bom, acho que o sol já baixou… Vamos voltar pra casa. Ainda tem comida chinesa na geladeira.
– Socorro! – disse, sem fazer som, para o pessoal do banco, enquanto era puxado pelo chato.
Mas ninguém me socorreu.

O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais