No Bar com o TOC-Mem
Certo dia, encontrei com o TOC-Mem (vulgo Michel) na rua, às dez horas da noite; curioso de por qual motivo tal criatura estaria a vagar naquele horário, eu, em toda a minha inocência e imprecaução (como se não tivesse aprendido nada com o Chato), fui lhe perguntar.
– O que diabos você está fazendo na rua a essa hora?
Olhando para a minha cara com os olhos arregalados, ele bateu na madeira ao seu lado três vezes. E, quando eu digo bateu, eu na verdade uso um eufemismo para “espancou com toda a força o portão ao seu lado a ponto de ele quase se desmanchar”.
– Não fale essa palavra! Se você falar e não bater três vezes na madeira, ele vem do próprio inferno e te castra!
E mais uma vez ele arregalou os olhos e desta vez ainda mais enfaticamente “bateu” na madeira.
– Deixa eu ver – comentei, ironicamente – se você disser essa palavra sem bater na madeira, você vai praquele lugar, onde ele te castra, certo?
– E ainda empala depois!
Suspirei.
– Mas você tá bem vestido – elogiei, olhando para ele em seu terno bordô, o cabelo todo engomadinho para trás e os óculos de armação dourada. – Pronde tá indo afinal?
– É que eu combinei de encontrar uns amigos num bar… Você não quer vir comigo?
Como se diz não para uma pessoa com TOC? Provavelmente, se eu recusasse, ele iria ficar pedindo e pedindo e pedindo até que eu aceitasse. Ou então ia me chantagear, dizendo que se eu não fosse, algo terrível, terrível, terrível aconteceria.
– Mas eu não estou nem arrumado pra isso! – retruquei. Seria minha salvação? Por um momento elogiei minha inteligência.
– Ah, mas a gente tá a um quarteirão da sua casa! É só você subir e se trocar. Eu espero.
Droga!, interioberrei.
No final, acabei voltando para casa e, embora tenha demorado milênios para me trocar, o TOC-Mem ainda estava lá, esperando-me, fazendo sabe-se lá o que que ele faz.
Depois dele, acho que não preciso nem fazer residência em psiquiatria…
E eis que finalmente, às onze horas da noite de segunda-feira (quem diabos – perdão, toc toc toc – sai de segunda???), ambos nós dois descemos para o bar que ele havia falado.
Ao chegarmos, não havia quase ninguém – o que é um eufemismo para “não havia ninguém, exceto pelos trabalhadores, dentre eles apenas um faxineiro, um barmem e uma garçonete” – mas, mesmo assim, o TOC-Mem teve problema para escolher uma mesa; olhou uma, olhou outra, calculou o ângulo (quer dizer, isso é o que eu acho que ele fez) de uma, calculou o ângulo de outra, testou o material, testou a inclinação, procurou por marcas, identificou cada parte da mesa e, finalmente, depois de 25 minutos, decidiu que uma das três únicas mesas que não estavam com cadeiras em cima estava boa.
Neste meio tempo, perguntei para a garçonete o que os levava a abrir em uma segunda-feira à noite, e ela me explicou que o bar inteiro era mantido pela mãe do “Michelzinho”, para ele ter algo para fazer durante a semana.
– Como toda boa Iídiche Mamme, né?
Suspirei.
Havia apenas três cadeiras ao redor da mesa, mas o garoto/homem/sei lá queria porque queria testar todas elas. Então, portando um par de esquadros, um transferidor e um compasso, todos tamanho família, surgidos sabe-se lá de qual parte obscura do corpo dele, ele passou a medir todos os ângulos possíveis da cadeira da esquerda.
– Por que ele tá fazendo isso? – indaguei.
– Se ele não ajustar milimetricamente a cadeira de acordo com a incidência da luz do juquibóquis, a ponte Cidade Jardim pode cair.
– Aimeudeus!
– Mas é verdade! – exclamou a garçonete, e por um minuto eu pensei que havia achado alguém que achava que o TOC-Mem estava certo. Seria TOC-Gârl?
Mistério. Só sei que depois disso saí de perto dela e resolvi entornar uma conversa com o barmem. Neste meio tempo, o meu suposto companheiro de bar tirava um esguichinho de álcool sabe-se lá mais uma vez de qual parte perdida de seu corpo e, com um paninho, limpava a cadeira inteira, de ponta a ponta, três vezes. E depois a mesa, mais três vezes. E depois a outra cadeira, o mesmo número de vezes. E, para garantir, antes de se sentar, limpou a própria mais uma vez. Entretanto, logo após se sentar, ainda inconformado, levantou e a limpou mais uma vez. Não satisfeito, higienizou-a seguidamente e, por fim, chegando ao ápice do desespero, virou praticamente o vidro inteiro de álcool no terno, antes de se sentar.
– Ei, David, quer parar de conversar com ele e vir se sentar! – berrou o T-Mem, fedendo a etanol. – Ajustei a cadeira especialmente para você!
Sentei-me, por fim, na cadeira, e fiquei impressionado que ele a havia arrumado de modo que a luz do juquibóquis bateria nele em parte, refletiria em um copo por outra e rebateria em mim.
– Assim os dois ficam iluminados – comentou.
– E cadê os seus amigos? – perguntei.
– Já foram – respondeu, indiferentemente. – Você não os viu saindo logo que entrávamos?
Olhei para trás, como se tentasse garantir que eles realmente haviam saído, ou se não estavam saindo agora, mas tudo que encontrei foi a faxineira sacudindo a cabeça. Será que ele só tinha amigos imaginários?
– Mas então… – comecei, tentando mudar o assunto. – Como vai a sua família?
– Ah, mamãe está bem – comentou, fuçando nos pacotinhos de açúcar que ficavam em uma cestinha. – E agora que eu descobri que o papai é carteiro, posso mandar milhões de cartas com desconto!
Nunca tinha ouvido falar de descontos de envio para carteiros, mas enfim…
– Tá mais tranquilo agora?
– Ah, estou sim.
– E como vai sua cabra? A…
– Celeste. Ela vai bem sim. Se bem que ela comeu uma grama colorida e acabou excretando na cor do arco-íris…
– ???
– É verdade – retrucou, sem nem tirar os olhos dos pacotinhos de açúcar, os quais perscrutava com tanto afinco que parecia querer comê-los com os olhos.
– De onde ela tirou a grama colorida?
– É que um dia desses choveu e formou um arco-íris bem na ponta do meu jardim.
– E tinha um pote de ouro? – ironiguntei.
– Não desse lado… E não deu tempo de chegar até o outro – respondeu inocente ao meu sarcasmo.
Ficamos em silêncio por um tempo no qual ele separou todos os 100 pacotinhos de açúcar e os organizou de acordo com o lote, validade, tipo de desenho, marca, quantidade…
– Ele faz isso sempre – comentou a garçonete, enquanto lhe servia um copo de refrigerante e me trazia um café. – Se ele não fizer isso todo dia, a luz do juquibóquis vai derreter o açúcar dos pacotinhos e vai caramelizar o chão de metade da cidade, e aí ninguém vai conseguir sair do lugar. E as formigas vão comer todo mundo vivo! – explicou, como se acreditasse piamente nas maluquices dele.
Meu Deus, eu preciso sair daqui! VIVO, preferencialmente!
Enquanto tomei o café, o TM praticamente engoliu um copo de refrigerante, depois outro e mais um. Aí, ficou hiperativo, senão por causa da glicose, por causa da cafeína; tornou a falar feito um desesperado, a grande maioria das coisas sem nexo algum, sacudia as pernas para todos os lados, as mãos tremiam e a cabeça vez por outra dava um tique.
Ele vai ter um treco! Ele vai ter um treco! E vai sair no jornal que eu matei um cara com TOC!
Bati na mesa três vezes, para afastar o pensamento, e aparentemente isso quebrou o feitiço da hiperatividade, trazendo o meu malfadado companheiro de volta à realidade.
– Preciso urinar – anunciou, levantando-se e caminhando apenas nos quadrados pretos (porque o piso era quadriculado estilo tabuleiro de xadrez) em direção ao banheiro.
Enquanto isso, a garçonete se aproximou.
– Quando ele vai no banheiro – disse-me, enquanto eu imaginava a cena – ele precisa fazer xixi três vezes, cada vez em um sanitário diferente.
– Por quê?
– Não sei ainda. Mas, por causa disso, ele vai, usa a primeira da direita, depois espera cinco minutos, usa a do meio, espera mais cinco minutos e usa a última. E, lógico, lava a mão nas três pias, e usa três folhas de papel.
– Por que essa fixação pelo número três?
– Não pergunte pra mim. Mas ele nasceu em três de março de 1986.
– Eeee?
– Além de ser três do três, a soma dos dígitos dá três. Talvez, se ele não seguir, ele desapareça – hipotetizou, sabiamente.
Dios mio!!!
Pouco tempo depois, quando já estava no meu terceiro café – só assim para aguentá-lo – ouvi uns berros vindos do banheiro. E, repentinamente, um homem de uns 95 anos voou porta afora, enquanto, do lado de dentro, o TOC-Mem arrumava seu terno.
– Ninguém vai ficar no caminho entre mim e minha empreitada! – berrou, antes de tornar a entrar.
O idoso, de calça arriada, olhou para mim, a garçonete, o barmem e a faxineira e, sem mais, saiu correndo. Aproveitei a deixa.
– Olhem, um disco voador! – exclamei, arremessando uma bolacha de chope.
Os três doidos se embasbacaram com o objeto voador, e eu dei no pé, indo como uma bola de boliche contra um grupinho vestindo camisas de força que tentava entrar, todos ao mesmo tempo.
Como eu me meto nessas coisas?
Nota do autor, setembro de 2021: o TOC-Mem foi um personagem que não engrenou. Não tenho muitas crônicas dele, mas as ideias absurdas são bem engraçadas.
De qualquer forma, vamos aproveitar para notar uma coisa: nesta época, eu gostava de fundir palavras como Guimarães Rosa (fiz isso até em alguns romances) e escrevia as palavras em inglês de forma aportuguesada. Fiz isso em algumas crônicas e ainda faço ocasionalmente, mas não em todos os romances.
Talvez, devesse manter os neologismos a estilo Guimarães Rosa. Eu gostava deles, mas não sei se todos entendiam…
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais