No cinema com TOC-Mem
Certo dia incorri no erro de ir com o cara com TOC para o cinema. Não sei por quê, eu tenho uma tendência a tentar ajudar pessoas sem solução, e acabo me metendo em cada saia justa…
O TOC-Mem havia me ligado na quinta-feira à noite, quando eu já estava de malas prontas para voltar para São Paulo, desesperado, falando que estava sozinho, que era dia 10, e que dia 11 seria feriado por causa do Papa, e que todo mundo iria embora daquela cidade, e que só sobraria ele abandonado, e que se ele não fosse no cinema ver o Homem-Aranha, ele seria dominado por um demônio e só o Papa poderia exorcizá-lo. Não obstante a minha imensurável vontade de ver o papa entrando em ação (eu juro que já estava imaginando o Papa berrando para o seu assistente: Para o Papa-móvel, Robin!, e o outro, Para onde vamos, Papa?, e ele, Para a Papa-caverna!), eu me controlei e falei que tudo bem, ficaria em Sorocaba mais um dia e iria com ele no cinema ver o Homem-Aranha. Ele ficou tão agradecido que disse até que me daria carona.
Ele desligou o telefone antes de eu formular o pensamento: pessoas com TOC podem dirigir?
Aparentemente, seria melhor que não.
Primeiro porque, embora eu tenha descido no horário exato, assim que passou pela frente da minha casa o TOC-Mem continuou e deu a volta no quarteirão; um minuto depois, passou pela minha frente de novo e deu outra volta; na terceira volta, estacionou o carro, mas não antes sem entrar e sair da vaga três vezes.
– Bom dia!!!
– Ahm… Bom dia, Michel…
– Vamos no cinema! Vamos no cinema! Vamos no cinema!!!
Enquanto cantarolava que ia no cinema, ele tirava o carro da vaga três vezes, paralisando o trânsito confuso logo atrás.
– Homem-aranha 3! Com três inimigos!!! Homem…
Aparentemente, por não ter achado a saída perfeita o suficiente, ele deu a volta no quarteirão, estacionou no mesmo lugar, praticamente batendo em uma velhinha que ia estacionar lá, e saiu mais uma vez.
– Ah, desta vez foi perfeito! – exclamou, e foi embora.
Nos faróis, ele ficava tenso para fazer a saída perfeita, com uma aceleração contínua e suave, no exato momento em que o farol mudava de vermelho para verde; quando dava a seta, dava três vezes, e tentava fazer as entradas mais perfeitas possíveis. Em verdade, o TOC-Mem seria um ótimo motorista, se não tivesse de fazer tudo três vezes…
Não preciso dizer que no Shopping ele entrou e saiu três vezes, estacionando, a cada vez, três vezes, de modo que, na nona vez, assim que ele puxou o freio de mão, eu abri a porta e pulei para fora, quase me estourando em um Ka roxo ao meu lado.
– Na volta, posso dirigir?
– Não! Ninguém pode tocar no carro da minha mãe além de mim e da minha mãe! – exclamou com tanta fúria que eu tentei me esconder atrás de uma Mercedes (afinal, acho que nem ele é doido a ponto de destruir uma Mercedes só para me bater).
Depois deste ataque de fúria – contanto que ele não virasse o bizarro Rulque, estava tudo bem – andamos calmamente pelo shopping até a entrada do cinema, onde, de fato, como ele previra, não havia ninguém; a cidade desaparecera devido ao feriado, e havia apenas um ou outro passante olhando as vitrines (como sorocabanos têm a mania de fazer).
– Duas para o homem-aranha 3! – pediu ele para a caixa.
Esta imediatamente emitiu dois tíquetes, e eu já pagara o meu quando o TOC-Mem olhava, intrigado, para o dele, ainda sem pagar.
– Esta aqui não saiu perfeita, você pode imprimir outra?
– Então são três entradas?
– Não, são duas! – intrometi-me. – Só que esta saiu com um defeitozinho, e ele queria uma perfeita, para guardar…
– Sinto muito, senhor, mas não podemos imprimir entradas se não for paga.
– Viu? Se conforme! – exclamei.
– Mas esta não saiu perfeita! Se eu não tiver uma entrada perfeita, formigas vão entrar no cinema e me levar para o formigueiro gigante delas!
Por um segundo pensei até que ponto ele não era uma criança mimada usando de desculpas para conseguir tudo que queria.
– Olha, ele tem TOC, será que você não pode…
– O quê?
– TOC.
– O que é isso, uma piada?
– Não, TOC é um transtorno obsessivo compulsivo… Ele acha que, se ele não fizer alguma coisa diversas vezes, certos pensamentos maníacos que ele tem na cabeça vão acontecer.
– É uma piada, né? Vocês são da Jovem Pan, é isso?
– Não, não somos, e o TOC é verdade, é um tipo de transtorno de ansiedade, tá escrito no DSM-IV.
– Cadê os microfones?
– As formigas! As formigas!!! As formigaaaas!!!!!!!!!
– Ai, meu Deus! Vai, imprime mais uma, depois eu vendo pralgum idiota…
– Não, essa não saiu perfeita, pode ser mais uma? Esta também não…
Nove entradas depois, estava eu na frente do caixa oferecendo entradas para o Homem-Aranha 3 para um shopping praticamente vazio (por que sempre eu que acabo pagando as coisas?).
– Pipoca! – exclamou o TOC-Mem, indo comprar três pacotes grandes (eu não cheguei nem perto, porque não queria nem saber de ter de pagar as pipocas também).
– Entradas! Entradas para o homem-aranha 3! Comprem entradaaaas! Por favoooor!
Repentinamente, um senhor baixote passou pela minha frente (o primeiro ser, afora os grilos, a passar por mim), e eu, provido de todo meu ar de vendedor falido, fui tentar vender.
– Senhor, ingressos pro homem-aranha 3! Dois pelo preço de um! Três pelo preço de um! Nove pelo preço de um! Pelamordedeus!!!
O homem se virou, e nós dois nos encaramos, embasbacados.
– Você! – pulojuntoberramos.
– Eu sabia que ia encontrar você aqui! – exclamou o chato, correndo para um abraço, do qual espertamente desviei; uma bola daquela densidade teria me mandado para a China. – O que cê tá fazendo aqui? Vai ao cinema com a namorada?
– Não, vou com um amigo meu… Por sinal, tenho uns ingressos sobressalentes, você não quer comprar? É pra mesma sessão que a minha.
Sabia que era arriscado, mas podia ser a única chance de vender os ingressos.
– Quero sim. Você tava vendendo nove por um, é isso?
E, sem mais nem menos, surgiu o TOC-Mem de um mar de pipoca, nadando como um golfinho, uma em sua mão, os olhos brilhando.
– Achei a perfeita! O mundo não vai se desfazer em bolhas de sabão!
Os dois se encararam, e pude sentir o ar pesado conforme duas patologias ambulantes profundamente carentes se encontravam. Era praticamente o homem-aranha e o venom.
– É assim, é? Eu fico longe por um tempinho e você me troca por outro? – berrou o chato, e, obviamente, neste momento o shopping encheu.
– Eu não te vejo desde janeiro! E antes disso você tinha sumido fazia uns 9 meses!
– Sete! E eu já te expliquei a história! E isso não é motivo pra me trocar!
– Como assim, te trocar? Desde quando eu não posso sair com outras pessoas?
– Você vai ver! – retrucou ele, simplesmente, arrancando uma lágrima falsa dos olhos, empinando o nariz e virando-se.
Neste momento, juntou-se um grupinho de pessoas (saídas sabe-se lá de onde, porque o shopping estava vazio até então) e me encarou com cara feia por ter partido o coração do chato.
– Ingressos do homem-aranha 3?
Um ou outro casal brigou por minha causa, cada qual tomando o seu partido, mas, um minuto antes de começar o filme, após muito esforço e depois de já ter desistido de explicar que minha namorada era mulher, eu consegui vender todos os ingressos para um grupo de lojistas que estava de folga.
Entrei no cinema rodeado dos lojistas, e o TOC-Mem imediatamente me viu; ainda estava testando a terceira fileira na qual pretendia sentar.
– Aqui!!! – triberrou e se triassentou.
Sem saber onde enfiar a cara (o filme já havia começado), fui para o lado ddo cidadão, tomando o cuidado de me sentar a uma poltrona de distância, colocando minha mala ao lado.
Eu mereço…
Porém, contudo, todavia, quando todos estavam altamente compenetrados no filme, aos 39 minutos e 57 segundos…
– Râguibiiiiiiiiiiiiiiiiiiii!!!!!!!!!!!!!!!!!! – mastergritourroberrochoroexclamoululou meu companheiro portador de necessidades especiais.
– Que demônios é isso? – sussindaguei entre Xiuuuuu!!!!’s.
– Se eu não berrar râguibi aos 39 minutos e 57 segundos de filme, o cinema corre o risco de derreter e escorrer em rios de lava!
– XIUUUU!!!
E, logicamente, quando o filme estava praticamente no final, e estava tendo a luta sangrenta do Venom, Duende Vermelho (ainda insisto que o duende vermelho é filho do verde, e o macabro é filho do vermelho!), Homem-areia e Homem-aranha (praticamente festa à fantasia), algo, não sei como, redondo e do tamanho da lua, praticamente, emergiu do teto, amarrado em uma corda de aço, uma pistola em mãos.
– Eu falei que você ia ver! – urrou e atirou.
A cena congelou à minha frente, quando dei um salto matrixiano para trás; neste momento, o TOC-Mem resolveu dar uma de herói (talvez inspirado pelo filme) e pulou no meio de caminho, acertando-o o tiro em cheio.
– Eu venci, Peter Parker! – berrou o chato, também alterado pelo filme, e só não ascendeu porque seu peso não permitia, mas caiu no chão e fugiu rolando.
– Michel! – exclamei.
O público ao meu lado esperava uma cena chorosa, cheia de amor, e já estavam praticamente chorando quando, ao pensar bem, aproveitei minha deixa, mas não sem, obviamente, deixar aquele ar de mistério.
– Hei de me vingar! – anunciei e corri.
O público bateu palmas, ignorando completamente o filme.
Sem dúvida tudo perdeu um pouco de graça quando o TOC-Mem levantou, massageando a perna, molhada com o líquido de uma pistola de água.
Nota do autor, setembro de 2021: O.o…
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais