No clube com o chato
Pleno carnaval, estamos eu e o chato em São Paulo. Eu não fui viajar, porque o trânsito é impossível neste feriado; além do mais, ir para uma cidade do litoral para batalhar entre milhares de paulistas por um lugar na praia, enfrentar filas em todos os lugares, ficar passando nervoso no trânsito de volta… Não vale a pena. Quanto ao meu companheiro, não foi porque… Bem, ele é um chato, você sabe como é.
Deste modo, como não havia muito mais o que fazer, estávamos nós dois na piscina, nadando. O chato poderia até ser um exímio nadador, mas há alguns empecilhos: sua circunferência é maior que seu comprimento, seu corpo boia como um pato de borracha e ele é um chato. Obviamente, como não podia deixar de ser, ele me parava o tempo todo para comentar alguma coisa, normalmente fazer uma reclamação.
– Olha isso, todas estas abelhas caídas na água! Que absurdo! Eu não acredito nisso! Pago toda esta mensalidade para ter abelhas boiando na água!
– Eles não podem fazer nada, abelhas caírem na água é uma consequência da piscina aberta – respondi.
– Mas e se uma delas me pica?
– Pelo menos ela morre mais rápido – falei e continuei.
Eis que logo depois ele me para mais uma vez.
– Está vendo aquele cara nadando ali? Nossa, como ele nada mal.
– Deixa ele, tem gente que não teve aula de natação.
– Mas ele tá nadando completamente errado! Você não tá vendo? Olha aquilo! Ele nem puxa a água nas braçadas!
– Quer deixar o cara?
– E ele deixa o cordão da sunga para fora! Que tipo de pessoa deixa o cordão da sunga para fora? É uma falta de educação tremenda!
– EU deixo o cordão para fora.
– Mas você é desatento. Ele não tem desculpa!
– Ai, meu Deus! – exclamo e continuo.
– Falando nisso, e esse teu cabelo?
– Não fala do meu cabelo!
– Você não deveria usar uma touca, não?
– Eu não gosto de touca.
– Então deveria prender ele.
– Não dá pra prender debaixo d’água.
– Mas ele tá longo demais, olha isso! Daqui a pouco eu vou confundir você com uma mulher!
– Então azar o seu! Deixa de ser chato!
E ele ficou quieto por um tempo, até a gente chegar no vestiário.
– Quer saber, eu tenho uma teoria de por que os homens não ficam muito tempo no vestiário.
– Vai, fala – retruquei mecanicamente, enquanto tomava banho na ducha.
– Primeiro, porque nenhum homem gosta de ver o outro pelado. Então, o quanto mais rápido formos, melhor. Já reparou que a maioria que se troca sozinha fica virada pra parede? A não ser quando estamos em grupos. Aí vamos conversando, mas sem olhar para baixo. Além disso, vamos rápido. Sem mencionar que ninguém gosta de ficar muito tempo, porque sempre tem uns velhos…
– Quer deixar os velhinhos em paz?
– De qualquer forma, quando estamos em grupo comentamos coisas estúpidas, que não precisam de muito tempo, por exemplo, com que eu dormi ontem à noite…
– Nem começa!
– Sem contar que o ambiente do vestiário masculino não é dos melhores.
– Enfim, qual é a sua teoria?
– Na verdade, era só um comentário. Mas eu acho que nós passamos menos tempo no vestiário para gastar mais tempo no bar. Afinal, o que a gente conversa aqui, conversa lá, e o ambiente é muito melhor. Agora, por que as mulheres gastam tanto tempo no vestiário…
– Isso nós nunca vamos saber.
– Nunca! Acho que deve ser um portal para outro mundo, sei lá… Elas devem ter uma loja de departamento lá dentro, massagistas, vendedoras da Avon…
Assim que saímos da ducha, realmente nos trocamos muito rápido, mencionando apenas que o Inter não tinha chance este ano. Pouco tempo depois, estávamos os dois tomando um café na lanchonete dentro do clube – eu, claro, com uma xícara grande de café com leite, assim como meu amigo.
– Ei, moça, vem cá – falou ele para a garçonete, nas pontas dos pés para poder ver por sobre a bancada.
Ela lançou um olhar para baixo e apenas após muito esforço conseguiu encontrar o meu companheiro chato.
– Olha só, o café pequeno vem com uma bolacha, certo? Logo, eu acho que o café grande deveria vir com duas bolachas.
– Quer deixar as bolachas em paz? – disse eu.
– Meu senhor, é apenas uma bolacha por cliente.
– Mas, e se eu e o meu amigo estivermos tomando o mesmo café? Então vão ser dois clientes, duas bolachas, um café.
– Aí estão, dois clientes, duas bolachas – respondeu ela, apontando para a bolacha no pires dele e para a qual engolia.
– Mas você não entendeu. Eu e o meu amigo estamos tomando desta xícara, e o meu amigo e eu estamos tomando daquela xícara, logo são dois cafés, quatro clientes, quatro bolachas.
A outra o olhou quase intrigada, curiosa e confusa, sem entender absolutamente nada do que ele dizia.
– Dá pra simplesmente dar a bendita bolacha? – perguntei.
– Mas são ordens superiores, eu não posso…
– Que ordens superiores? – começou o chato. – O café comum é um real, o grande é dois. Logo, se com um real eu ganho uma bolacha e 150ml, com dois reais eu deveria não só ganhar 300ml, como também duas, e não uma, bolacha!¹
– Mas, meu senhor, eu não posso…
“Algum dia Deus ainda vai me recompensar pela minha paciência!”, pensei comigo mesmo, olhando para ele.
– É uma bolacha! Quatro clientes, dois cafés grandes, deveríamos ganhar oito bolachas! E seu eu estivesse tomando com a minha mãezinha este café?
– Então, quando a sua mãezinha chegasse, eu daria para ela a bolacha dela – respondeu a atendente, sem paciência.
Obviamente, o chato, chato como só ele, pegou o celular e se preparou para ligar para a sua mãe, mas estava sem bateria.
– Olha isso, sem bateria! De novo! Como pode? Os celulares devem ter uma inteligência superior que mancomuna contra todos nós! Sempre que eu quero usar, acaba a bateria! Quando não quero, está totalmente carregado! Isso me irrita demais! – reclamou ele. – Pode me emprestar o seu?
– Sem bateria também.
Mas o chato não ia desistir; bateu os pés, atravessou o saguão, seguiu para os telefones públicos e discou o número da sua casa.
– “Chamada a cobrar, após o sinal diga o seu nome e a cidade de onde está falando” – repetiu ele.
– Realmente, quem é o idiota que realmente fala…
– Seu filhinho, São Paulo – falou o chato, no que eu me calei.
– Alô, filhinho?
– Oi, mãezinha! Escuta, eu tô aqui no clube com o meu amigo e…
– E você está no clube e nem me chamou? Mas que filho desnaturado é este? Como pode? Eu não te criei pra que…
Revelação: a mãe do chato era a chata!
– Escuta, dá para você vir aqui rapidinho? É para isso que eu liguei. A mulher do bar não quer me dar a bolacha que eu mereço por direito, só se você estivesse aqui…
– Quem é que está negando a bolacha ao meu filhinho? – esganiçou a chata. – Ela vai ver só! Eu já vou chegar aí! Espera um pouco, meu filhinho!
Do outro lado do fone só se podia ouvir o barulho de uma moto – de umas 5000 cilindradas, pelo que parecia – conforme a mãe do chato vinha para cá.
– Eu… Tô atrasado. Pega a minha bolacha se quiser. Tenho de ir.
– Tá bom – respondeu o chato, encarando com olhos frios a atendente, os braços cruzados, sem pretender arredar o pé enquanto não tivesse a sua bolacha.
O que aconteceu depois eu não sei. Dois chatos já era demais para mim. Posso ser de gêmeos, mas acho que nem pentagêmeos meus aguentariam a geração chata.
Nunca mais vou ao clube com o chato!
¹Nota do autor, janeiro de 2021: gosto sempre de notar a grande diferença de preços que temos ao longo destes quase 16 anos. Você consegue imaginar um café espresso grande por R$ 2,00? Atualmente, o preço gira entre R$ 8,00 e 16,00, dependendo de onde você compra.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais