O Chático Grupo Obeso
No meu posto, chamado Nova Esperança, eu criei um grupo especialmente para combater a obesidade, já que esta havia sido uma luta minha na adolescência e desde a qual eu sempre me senti compadecido dos gordinhos, em especial as crianças. Imaginem agora qual não foi a minha surpresa quando, em um belo dia de grupo, na quinta-feira, às quatro da tarde, eu encontro o meu “amigo” Chato sentado em umas (porque ele precisava de mais de uma para acomodar sua buzanfa) das cadeiras.
– Você? O que é que você tá fazendo aqui? Veio me entregar mais amostras grátis?
– Não – o Chaticus Maximus respondeu. – Eu vim participar do grupo, ué!
– Mas, pra participar do grupo, você tem que ser frequentador da unidade! – exclamei imediatamente, agarrando-me àquele fio de esperança para me livrar dele. – Eu não posso deixar você ficar se…
– Mas eu sou frequentador! Veja meu cartão família!
Ele me entregou um pedaço amarelo de cartolina e, infelizmente, lá estava o seu nome, o dos outros integrantes da família, um endereço e a área – vermelha, a que eu cuidava.
– Mas… Como?!
– Ué, eu e mamãe nos mudamos para cá pra ficar mais perto de você!
Eu não acreditei no que eu tinha acabado de ouvir.
– E o melhor é que, pelo preço de um apartamento minúsculo lá pro centro da cidade, nós compramos uma casa gigantesca, com um rio próprio ao lado. Quase como o rio Ipiranga.
– Rio? – duvidolhei.
– Tá, é um riacho formado pelo esgoto das outras casas, jogado a céu aberto… Mas nós vamos trabalhar na despoluição do rio do Imperador.
Ele já tinha até nomeado o esgoto!
– E como é a morada do Dom Quichato de Nueva Esperanza?
– É uma casa de três andares, com cinco quartos, sendo três suítes, e sala de jantar e sala de estar e…
O pior de tudo é que, conhecendo o lugar, eu não duvidava nem um pouco de que a casa fosse assim mesmo. A cada visita domiciliar eu tinha uma nova surpresa sobre a arquitetura das casas da minha área.
– Tá bom, vamos deixar isso de lado – falei, suspirando – e continuar com a aula. Eu quero fazer uma pergunta a todos: por que estamos aqui?
O chato imediatamente levantou as mãos e começou a saltar na cadeira. No andar debaixo, pessoas acharam que o prédio estava prestes a ruir.
– Emagrecer! – alguém falou, e o chato a fulminou com o olhar.
– Não! – exclamou ele. – Aprender a emagrecer. Não é, doutor?
Ainda meio chocado com a revolta, falei que era, pois não adiantava nada apenas emagrecer; eles tinham de aprender como fazê-lo, para sempre conseguirem lidar com isso. O chato, enquanto isso, sorria satisfeitíssimo, os braços cruzados e a maior expressão de contentamento que já vi, pela resposta certa.
– Então, a primeira coisa que quero fazer é pesar e medir cada um de vocês.
– Eu primeiro! – gritou o chato, pulando das cadeiras. Lá embaixo, alguns já começavam a se esconder sob mesas, para não morrerem soterrados.
– Muito bem, muito bem… – disse eu. Sua altura é esta… E seu peso, este… Agora, seu IMC, deixe eu calcular… É de 52. Ou seja, pessoal, ele é considerado como um superobeso, uma classificação que até hoje só era usada nos Estados Unidos.
– Viu só, mamãe! Eu sempre disse que eu era super! – ele exclamou.
Eu gelei com aquela fala; mamãe? A senhora chata major, a Chaticus Mamicus, estava ali? Onde?
– Isto aí, meu filhinho! Agora, sou eu.
Aquela voz havia vindo de algum lugar… E, quando dei por mim, algo que mais parecia uma montanha feita de roupas, como a baleia-ilha de Sinbad, de chapéu rosa e óculos escuros, da mesma altura do chato, porém de circunferência levemente maior e peruca ruiva, levantou-se (o que não mudou de todo sua altura) e manobrou em minha direção.
Ela mal cabia na balança, e esta quase chegou ao seu limite (e isso que nós tínhamos uma balança de veterinário), mas consegui medir o seu IMC.
– 56! Eu sou mais super que você, filhote!
– PelamordeDeus! – exclamei. – É quase um buraco negro de tanta densidade corporal!
– Centenas de quilos de gostosura – respondeu a madre chata.
Os pacientes ficaram horrorizados com a afirmação.
– Eu quero estabelecer a meta de todos chegarem ao IMC de 25, perdendo meio quilo a um quilo por mês – disse eu, escrevendo na lousa. – Isso significa que vocês têm de perder mais da metade do seu peso!
– O que deve levar… Uns 15 anos para mim – disse o chato.
– E 17 para mim – completou a mãchata.
– Mas vai demorar demais, doutor.
– Mas não é para ter pressa. Não sei quanto a você, mas eu quero estar vivo daqui a 15 anos.
– Não, eu quero emagrecer tudo isso em três meses! – exclamou o chato.
– E por que isso? Pra que tanta pressa? Quem perde fácil, ganha fácil. Sem mencionar as pelancas que ficam.
– Eu preciso emagrecer, porque você disse que eu tô muito gordo.
– Quando?
– Umas semanas atrás, quando nós fomos comemorar seu primeiro salário.
– Ah, sim… – respondi, lembrando-me da malfadada aventura do chato e do garçom chato. – Mas, e daí, pra que perder tanto peso tão rápido? Não vejo por que…
– É que eu tenho um casamento pra ir.
– Ora, você não emagreceu nem no seu próprio casamento, vai querer emagrecer agora?
– É que eu vou ser padrinho!
– E quem em sã consciência iria chamar você para ser padrinho?
– Ah, vá! – ele respondeu, levantando-se e saltando em minha direção, em um abraço do qual eu tentei escapar a todo custo, mas não consegui. – Quem mais, se não o meu melhor amigo?
Eu fiquei horrorizado.
– Afinal de contas, você foi meu padrinho, logo é minha obrigação ser o seu padrinho.
Dios santo de mi alma! Por quê??? O que eu fiz para merecer isso???
– Mas, sabe o que é, a gente só chamou três casais de cada lado, porque, sabe como é, só três podem assinar, então não tem mais lugar nem pro meu lado, nem pro da Mirian…
– Ai, mas que honra! – exclamou ele, os olhos brilhando. – Então, eu vou ser padrinho dos dois lados! Vou ficar no meio e fazer um discurso! Um poema com versos decassílabos como Camões!
Não!!! Pior que isso, só se…
– E eu vou falar com o tio Hilário pra levarmos o pandeiro e a sanfona!
Eu suspirei longamente; deixei caírem a cabeça e os ombros. Aquilo era um horror. Quase um prenúncio do fim do mundo.
– O amooooor! É o caloooooor! Quimiaqueci… A aaaaalmaaaaa! – esperneou ele, cantando, e saiu da sala, felicíssimo, com sua mãe fazendo um dueto de gralhas desafinadas com “Canção da América” logo atrás. Até hoje eu não sei se ele foi para a aula somente para me dizer aquilo, ou para me irritar, ou se ele realmente queria saber como emagrecer…
Nota do autor, setembro de 2021: ah, o Chato… Bem, tirando o Chato, de fato, eu fiz um grupo de emagrecimento no posto onde trabalhava. Infelizmente, a adesão não foi lá muito boa… Vou lhe dizer, se tem uma coisa difícil, é ensinar as pessoas a emagrecer! E, mais ainda, depois que tive filhos, eu descobri: é difícil, mesmo!
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais