O Chato e Marla
Mais uma vez estávamos o chato e eu no bar (e o barman ficou uma meia hora pedindo o meu RG apesar de eu ter falado que não ia beber nada além de café. “Mas café irlandês…”, “Não, só com leite! Eu não bebo álcool!”, “Mas, para servir café com Amarula, tem de ser…”, “É só com leite! Você coloca álcool no leite? Não! Então! A vaca tava de ressaca quando deu o leite? Não!”), conversando sobre o mistério mais insolúvel do mundo – não, não é “pra que existe o orkut? ¹” –, as mulheres, quando ele me vem com a costumeira frase:
– Eu acho que eu vou terminar com a Marla.
– Marla?
– É.
– Nome engraçado… Já vi Marlene, Marlete, Marlecenilda, mas Marla é novo pra mim.
– Então, acho que eu vou terminar com ela.
– Marla… Dá pra formar arma com as letras… – prossegui, ignorando ele completamente.
– É muito estranho – prosseguiu ele, me ignorando.
– Alma…
– Não sei por que, mas é como se…
– Amar… Ramal…
– Ela… Assim…
– Mala… Uhm… Lamar! Que nem o diretor do Doug!
– É como se ela não tivesse opinião própria.
– Lama… Ahm? Como assim?
– Ela concorda com absolutamente tudo que eu falo… Repete as minhas opiniões… Sabe? Nunca opina sobre o que eu falo, só ouve… Ouve… E depois repete tudo!
– E qual o problema com isso?
– Não sei, é como se… Eu estivesse perdendo a minha exclusividade.
Rapidamente imaginei uma Chata.
– Já pensou em patentear?
Rapidamente afastei a ideia da cabeça antes que ela se propagasse e logo viesse um campo cheio de chatinhos… E os cavaleiros do Apocalipse.
– Agora que você falou… Onde é o escritório de patentes? Aí ela não só não vai mais poder me repetir, como, se me repetir, vai ter de me pagar!
– Não! Não! Olhescutaqui… Este negócio de ter exatamente a mesma opinião que você em tudo é ótimo.
De repente o garçom aparece, me olhando de soslaio, entre a bebida para o chato, e, antes de entregar a minha, ainda tem a cara de pedir o RG de novo.
– Escutaqui, cara… EU NÃO BEBO ÁLCOOL! É difícil de entender? E NÃO TEM ÁLCOOL NO CAFÉ! Que você acha que eu vou fazer, misturar breja no café?
– Ah-há! – respondeu ele, tão espertamente quanto conseguia. – Só quem bebe breja chama ela de breja!
– Eu não bebo! – quase gritei, pegando-o pelo colarinho, provavelmente com os olhos esbugalhados de drogado em crise de abstinência, porque ele colocou a xícara na minha mesa e fugiu rapidinho. – Me lembra de nunca mais vir aqui – falei pro chato, tomando o café (sem álcool!).
– Sim. Mas então, por que é ótimo o fato de ela concordar com tudo?
– Vocês nunca vão discordar! – respondi de pronto. – Nunca vão brigar! O que você ainda não entendeu é que o que estraga as mulheres é que elas nunca concordam com absolutamente nada, por isso relacionamentos são eternas brigas por poder que, apesar de a gente ganhar uma ou duas batalhas a cada mil, a gente nunca ganha a guerra! ²
– O que você tem contra não concordar com tudo? Eu não concordo com tudo e olha como eu estou!
Eu olhei para aquele cara gordo, careca, baixote, de óculos, irritadiço, sem dinheiro, morando com a mãe, com emprego indefinível, e lutei para o café não voar pelo meu nariz enquanto segurava a gargalhada.
– Isso não vem ao caso – prossegui, tão serenamente quanto possível (o que parecia o tom de um papagaio em um terno tentando cantar o hino nacional da Alemanha com a língua presa). – Estou falando de mulheres. Você é uma mulher? Então. Mas pensa comigo. Ela nunca vai discordar de você em absolutamente nada… É o relacionamento perfeito!
– Sério?
– Sério!
– Mas, e a minha exclusividade?
– Não se preocupa… Ou vão tacar impostos nela, ou você vai perder mesmo quando ficar velho e/ou se casar, então…
– Do que você tá falando?
– Olha, é o seguinte… Terminar não é uma boa coisa. Acho que você deveria continuar. Afinal, vocês não vão brigar… É ótimo.
– É, agora que você falou… Acho que vou continuar…
– Isso aê, garoto!
– Realmente… A gente nunca vai brigar… É um sonho que se torna realidade!
– Bom pra você.
– E aquela… Qual o nome?
– Ah, não, coisa de balada em balada deve ficar… Além disso, não quero ter de colocar os grilhões por enquanto.
– Ah, tá… – Ele tomou o último gole de cerveja, e o garçom apareceu, sorrateiro como um ninja, por trás.
– RG? – perguntou.
De repente, eu vi apenas o olhar de ódio na cara do chato, e tive pena do homem.
– ELE NÃO BEBE, C@&%#*!!! – gritou, transformando-se no Bizarro-Rulque mais uma vez…
Eu saí correndo do bar… Ele sabia como voltar para casa sozinho mesmo… E eu já tava cansado de ir pra delegacia com o chato transformado em uma coisa meio verde, meio rosa, raivosa como um púdou depois de uma tosa…
Nota do autor, abril de 2021: eu passei por uma fase em que a maioria das crônicas do chato terminava com ele irritado, transformando-se no bizarro rulque, e eu escapando pela tangente. Tem gente que não gostava nem um pouco, mas eu acho uma metáfora bastante interessante, especialmente para os dias de hoje. Quem é que não perde a paciência e não poderia virar um bizarro rulque, às vezes por mera chatice? E, na verdade, não por uma chatice externa, mas por uma chatice interna?
¹ É altamente possível que você não saiba o que é Orkut. Bem, quando tudo aqui na internet era mato, existia uma “Pré-facebook” chamado Orkut, uma rede social na qual você tinha uma limitação de fotos que poderia compartilhar, fazia grupos com amigos e ficava pedindo testimonials sobre si mesmo (declarações falando o quão legal você é).
² Um chefe meu me dizia: “Você tem duas opções no casamento: ser feliz ou estar certo”.
Querida, se você estiver lendo isso, foi meu chefe quem disse, tá? Eu coloquei aqui só pelo humor. Não concordo, não, viu? =)
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais