O dia em que a Marla veio atrás do Chato
– Socorro, David! Me ajuda!
– O que foi agora?
O que foi uma resposta idiota, porque às seis horas da manhã eu tinha todo o direito de xingar o chato e mandar ele cair fora, uma vez que eu só teria de acordar dali a uma hora, uma hora e meia. Mas não, eu perguntei o que era, e isso sempre foi o suficiente para ele deslanchar em um discurso assustado que normalmente nos metia em confusão.
Eu abri a porta e deixei o meu amigo irritante entrar; ofegante, desesperado, tentando arrancar os cabelos que não tinha, a roupa toda amarrotada de quem dormiu em um lugar não muito agradável, ele desmoronou na cadeira.
– O que foi que aconteceu? – perguntei, bocejando, e ainda de cuecas, note, porque ele não me dera tempo nem de colocar uma camiseta.
– A Marla. Ela tá me cobrando cada vez mais do casamento.
– Também, vinte e cinco de maio tá chegando né? Eu não te falei pra mudar a droga da data?
– E quem disse que adianta? A cada dia ela fica mais chata, se acha mais e mais a rainha do pedaço, e não quer mais que mude a data do casamento, especialmente porque ela já comprou um vestido e já viu o bufê e tudo mais…
– Meu Deus! Ce tá ferrado!
– E eu não sei? Me ajuda!! Ela já descobriu que eu tô fugindo pra cá!
– A Marla tá vindo pra cá?! – interroclamei, meio dividido entre o medo de ter de vê-la e a vontade de finalmente descobrir que era aquela figura que tanto infernizava a vida do chato.
– Ela descobriu que eu tava me refugiando na tua casa, depois em Peruíbe, e quando eu finalmente achei que tinha despistado ela, falando que eu viajei com você pro sul, pra visitar um primo teu, ela descobriu a lista de aprovados na faculdade, viu que seu nome só tava na da PUC, juntou dois mais dois e descobriu que eu tô me refugiando na tua casa.
– Até aí, tudo bem, o máximo que ela vai fazer é vir pra cá e ficar me perseguindo, o que não adianta nada, porque aqui ninguém me conhece por nome. Ela não tem o meu endereço, tem?
– Não, não, eu anotei o endereço e guardei o papel na carteira. Nunca mais tirei de lá!
– Então tá tudo bem… Ela não sabe meu apelido, sabe?
– Nem eu sei o teu apelido!
– E eu não pretendo contar pra você não fazer besteira de novo. Enquanto você não souber, a gente tá seguro aqui.
– Certo – respondeu o outro, incerto. Estava tão desesperado, mas tão desesperado, que havia esquecido de ser chato e me encher saco pra descobrir o apelido que haviam me dado.
– Bom, eu tenho coisas pra fazer hoje… Então, se você não se importa…
– Mas onde eu vou me esconder enquanto você estiver fora?
– Eu não sei e…
De repente, contudo, alguém bate à porta, e, se o chato não fosse tão pesado, com certeza teria voado através do teto.
– Quem é? – perguntei.
– David? Aqui é a Marla.
O meu amigo me olhou com profundo terror e eu, com condescendência daquele ser que viria a ser acorrentado eternamente até que a morte (ou o advogado) os separasse, mandei que ele se escondesse no meu quarto e trancasse a porta.
– Espera só um pouquinho… Eu não tô vestido… – disse, tentando ganhar tempo, e rapidamente peguei uma camiseta da cômoda, na sala. – Pronto – anunciei, destrancando a porta para que ela entrasse.
Para a minha surpresa, Marla não era o dragão de vinte cabeças que eu imaginei que fosse, pelas descrições do chato; uma cabeça mais baixa que eu, senão mais, parecia dócil como uma garotinha inocente, mas formosa – pra não dizer outra palavra (desculpe-me a indiscrição, chato) – como uma mulher – no caso, provavelmente uma modelo.
Como uma pessoa dessas pode ficar com o chato?, perguntei-me. A vida era injusta! O lado bom é que eu sabia que ela tinha ficado doidona desde aquela história de casamento, mas, pensando bem, eu não iria me casar mesmo, então…
Deixando esses pensamentos de lado, eu voltei para o que ela falava.
– Você viu o meu noivo por aí?
– O… – quase que eu falei Chato. Mas qual é o nome do chato? Por que eu nunca pergunto nomes pras pessoas que eu conheço? – O seu noivo? Não. Ele não tá aqui. Veio uma vez só. Aliás, duas. Aquela antes de a gente ir pro sul e logo depois que a gente voltou, mas isso foi há pouco tempo, não deve dar nem dois dias… – menti.
– Estranho… Eu achei estes recibos de pedágio na mesa, tá vendo? Sem contar estes pacotes de mini trakinas meio comidos…
O chato tinha de deixar pistas!
– Aqui tem o suficiente para ele ter ido e voltado umas cinco vezes de São Paulo pra cá.
– Estranho. A não ser que ele tenha vindo e não me visitado, o que é impossível… Aliás, como você descobriu que eu morava aqui?
– O cheiro dele. Dá pra sentir de longe – comentou ela.
Meu Deus, uma detetive maníaca com olfato de um pastor alemão biônico! Que medo!
– Mas ele não tá aqui, não – tornei a mentir. Quantas vezes mais ainda teria de mentir pelo chato?
– Você tá mentindo. Dá pra sentir o cheiro – respondeu ela, simplesmente.
Ela sente o cheiro do medo, daqui a pouco! Ela vai acabar me comendo vivo e oferecendo meu cérebro pra uma criança no avião!!!
– É que eu ainda não tomei banho. Eu acabei de acordar!
– Uhm… Certo. E você não vai me mostrar a tua casa? – ofereceu-se ela para um tur, o qual eu sabia ser um pretexto para procurar o chato.
– Ah… Não, agora não dá, eu tô atrasado pra aula, a casa tá uma bagunça, você não vai nem querer ver, tem cuecas voando por todos os lados, tem uma camiseta minha de calouro que já deve ter mofado de tanto reutilizar, sem mencionar que eu babei em toda a minha roupa de cama e…
Tanto exagero pareceu ser o suficiente para aquela a-ser-maníaca-por-limpeza (como toda esposa é) desistir da ideia e se relevar a procurar o chato em um outro lugar.
– Bom, tudo bem, eu vou procurar o meu noivo por aí. A gente ainda precisa comprar o terno dele para o casamento.
– Ah, sim, claro – respondi eu, incerto. – Felicidades para vocês dois, viu? Mazal Tov! – exclamei, estendendo a mão, rezando a Deus para que aquele ser estranho sumisse da minha frente.
– Ah, uma festa judaica! Eu sempre quis uma festa judaica! Será que ainda dá pra contratar um rabino? A gente pode fazer uma festa cristã e outra… – começou ela, pensando alto, e no que ela passou pelo umbral de entrada, eu bati a porta com força, para que ela não entrasse mais, perguntando-me como diabos ela havia entrado no prédio se o portão lá embaixo ficava trancado e ninguém saía de casa antes das 7:58 (notem que as aulas começavam às 8).
Quando ela se foi, eu juro que senti uma aura maligna saindo do cômodo e um dragão de trinta e cinco cabeças com nariz de pastor alemão e sonares no lugar de orelhas se indo dali, com dificuldades para manobrar a cauda enorme na escada estreita.
Pouco depois, eu bati à porta do quarto, baixinho, anunciando que era eu, sozinho, e que o perigo havia passado (se eu bobeasse e falasse alto, não seria improvável que Marla me escutasse lá de Timbuctu). Quando entrei, o chato estava escondido a um canto, agarrando-se ao meu cachorro de pelúcia¹, envolto em um cobertor, respirando na fronha retirada do travesseiro como se fosse um saco de papel marrom para aqueles caras que hiperventilam.
– Tá tudo bem – disse eu. – Mas eu não acho seguro ficar por aqui. Ela já te achou aqui uma vez, não é improvável que ela volte de novo de tarde, e eu não duvido que ela consegue cruzar essa porta sem dificuldade, por mais que eu tenha trancado.
Ou que ela escale a parede do prédio até a minha área de serviço como o homem-aranha, ou voe com as suas asas de dragão…
O Chato concordou comigo, assustado demais para falar qualquer coisa.
– Vamos tomar café. Depois, eu vou arrumar uma roupa de calouro pra você… Você é careca, mesmo, vai se perder na multidão, e quem sabe os outros não disfarçam o teu cheiro?
Ele mais uma vez concordou, assustado, e eu nunca fiquei com tanto dó de ninguém. E definitivamente, nunca quis tanto deixar o meu casamento pra depois dos trinta e tantos anos.
Eu estendi a mão, e o chato se levantou. Logo depois disso, iríamos para a faculdade, e tudo ficaria bem (esperava).
Mas isso já é história pra outra crônica.
Nota do autor, agosto de 2021: o meu apelido era Casagrande, pela clara semelhança capilar entre nós.
¹ (Nota de 2021) Para quem não conhece, pode parecer estranho, mas ele chama Scrubs e era um Cachorro muito simpático, meio desmilinguido, com pernas longas que você poderia amarrar, muito divertido. Depois de uns 10 anos de tê-lo comprado, dei para a minha sobrinha e não sei o que se fez dele…
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais