O Garçom Chato
Era uma quinta-feira, começo de janeiro de 2012, e lá estava eu, tranquilamente trabalhando no meu posto de saúde, na zona norte de São Paulo, quando me chegou uma visita inesperada. A enfermeira havia me avisado da chegada de um homem com uma grande maleta e que esperava por mim, a descrição levando a crer que era um representante de laboratório. Pensando que aquele seria o primeiro representante a bater em meu consultório, pedi a ela que o chamasse e fiquei a esperá-lo.
Contudo, quem me passou pela porta não foi ninguém menos que…
– Você!
– Eu!
Era ele. O chato. Estava vestido com a sua costumeira calça bege sem graça, sua camisa amarela gema de ovo com xadrez marrom horrorosa e seu sapato preto e branco que parecia roubado do boliche, guardado apenas para ocasiões especiais. Sua mala era tão grande, mas tão grande, que ele carregava puxando pelas costas, enquanto ela girava em rodinhas quase de um mini-kart. Na verdade, era até questionável quem puxava quem.
– O que você tá fazendo aqui?
– Eu li no seu blog que você estava trabalhando aqui, então eu consegui um emprego como representante de laboratório e vim te visitar.
– Como você conseguiu isso, se nem nível superior você tem?
– Eu fiz uma universidade online da Salamanca.
– E que laboratório em sã consciência ia empregar você?
– É um laboratório chinês, novo no mercado. Vende os remédios por 10% do valor dos outros laboratórios.
Balancei a cabeça, inconformado.
– Então, você veio aqui para me dar amostras grátis?
– Não, eu vim aqui pra fazer uma reclamação!
– Reclamação? De quê?
– Que você saiu com a sua família ontem para jantar e nem me chamou!!!
Meu olhar de inconformidade duplicou de intensidade.
– Eu vi no seu feicibuqui! Não tente mentir! Eu vi o pousti e as fotos! Comemorando o seu primeiro salário, não é?
– E o que você tem a ver com a história?
– Ué, eu não sou o seu melhor amigo?
– Não – respondi, secamente, mas ele fingiu não ouvir.
– Então, vamos sair para jantar hoje?
Eu não ia ter como escapar daquela. Se eu não saísse com ele naquele dia, iria ficar escutando pelo resto da vida. E eu não tinha dúvidas de que ele seria louco o suficiente de achar uma casa no bairro onde eu trabalhava só para ser atendido no posto e poder me azucrinar diariamente.
– Tá bom! Que lugar você sugere?
– Mas quem tá convidando é você, você que tem de me falar onde.
Eu havia sido coagido e nem sequer o havia convidado, mas, fazer o quê? Ia escolher um lugar barato para não gastar muito com aquele chato.
– Vamos no Habib’s, então. Estou com vontade de comer esfirras.
Ele imediatamente assumiu uma expressão de decepção.
– Que foi?
– É que eu não gosto de lá.
– Por quê?
– Eu nunca sei diferenciar os tipos de mini-quibes. Aí, eu peço um de cada, e tenho de morder um naco de cada um até definir o sabor, e, quando eu finalmente descubro, já acabou o recheio.
– Então peça só de um tipo!
– Mas eu gosto dos três!
– … – eu não respondi, só expressei a minha inconformidade.
– E, além disso, o Beirute é muito grande e não tem quatro tipos de carne, a esfirra de queijo me dá gases, a de frango me dá azia, a de carne…
– Tá bom, tá bom! Onde você sugere?
– Bom, já que você quer comida árabe, eu conheço um…
– Ok, então vamos assim que eu sair daqui.
– Vou ficar esperando aqui fora.
E assim ele passou o dia, sentado pacientemente sobre a sua mala (que, aparentemente, era feita de titânio para aguentar o seu peso). Quando finalmente saí, fomos direto para o lugar, com o chato indicando o caminho (ele se recusou a fornecer o endereço, de modo que não pudemos ir de GPS, mas preferiu ficar indicando, e nós demos voltas e mais voltas desnecessárias até chegar a um restaurante a poucos quilômetros de lá).
Lógico que era o mais caro do país.
Escolhemos um lugar, sentamo-nos e nos preparamos para pedir. A cada prato (ou melhor, valor) que batia os olhos, meu coração doía mais e mais; os olhos do chato, por outro lado, que só conseguia comer bem nas vezes em que me obrigava a pagar por suas refeições, brilhavam loucamente.
Repentinamente, sem nada dizer, um garçom depositou com brutalidade na mesa uma porção de pão sírio, homus, coalhada e tabule, virou-se e desapareceu, como um ninja. O chato encarou o ar ao redor de si com indignação.
– O que é isso?
– Acho que é o cuver.
– Cu verde?
– Não, cu-ver. Couverti. Aquelas entradas.
– Ah, sim. Mas, ele não deveria avisar o valor ou perguntar se a gente quer, antes de simplesmente jogar na mesa?
– É, dever, deveria – disse eu, pegando um pedaço de pão e passando homus. – Mas, pelo jeito…
O chato prosseguiu indignado, mas logo se resignou a comer um pouco de tabule. Seu estômago, neste ínterim, roncava.
Logo o prato acabou, e ele começou a procurar o garçom, mas nada de ele aparecer.
– Eu quero pedir meu prato logo…
Mal ele falara isso, o homem surgiu na outra mesa; o chato fez de tudo, só faltou soltar fogos de artifício, mas ele não olhou. E, quando afinal terminou de conversar na mesa, virou-se, não conseguiu evitar de vê-lo, mas simplesmente estendeu sua mão, disse “peraí”, e desapareceu novamente como um ninja.
Ficamos ambos inconformados.
– Acho que pegamos o pior garçom do restaurante – murmurou o chato. – Onde já se viu? Peraí? Que falta de educação!
Pouco depois, ele emergiu do chão novamente, conversando com outro garçom, esbravejando sobre algo; e, cinco minutos depois, o chato já roendo as unhas de fome, ele surgiu ao seu lado.
– Bebidas? – indagou.
– Suco de laranja – pedi.
– Vocês têm chá? – indagou o chato.
O homem não respondeu, mas simplesmente prosseguiu, inexorável, escrevendo em sua caderneta. Um minuto depois, murmurando “Suco de laranja, certo”, virou-se para o chato e lhe perguntou o que queria.
– Vocês têm chá?
– Temos.
Silêncio, no qual um esperava que o outro falasse algo.
– De quê? – falou, afinal, o chato.
– Chá verde e chá preto gelado.
– Tem chá mate?
– Temos chá preto.
– Mas não é a mesma coisa?
– Um é preto, outro é mate.
– Então, tem mate?
– Não, só tem preto.
– Mas como é possível não ter chá mate em um restaurante como esse?
O outro não respondeu.
– Então eu vou querer o…
– Peraí.
E desapareceu como um ninja.
– Que absurdo! – exclamou meu colega. – Pra onde ele foi? Eu quero pedir o prato!!!
Mas ele não voltava. Pouco depois, outro garçom passou ao nosso lado, e o chato o chamou.
– Eu quero um chá preto.
– Com gelo e limão? – o outro indagou.
– Sem nada – o chato disse.
– Mais alguma coisa?
– Eu quero…
Nisso, o nosso garçom ninja com feições árabes e um bigode gigante surgiu ao lado do outro. Este lhe passou o pedido do chá e se foi; o outro, inexoravelmente, anotou, enquanto o chato tentava lhe pedir os pratos. Contudo, no momento em que ele levantou o rosto para olhá-lo, e o chato imaginou que este seria o momento para pedir a comida, ele disse “Peraí” e desapareceu.
– Ahhhh!!! – gritou o chato, tentando arrancar os poucos cabelos que tinha nas laterais.
Dez minutos depois, o homem repentinamente surgiu com as bebidas.
– Eu quero pedir dois quibes e três esfirras de carne e… – disparou o chato; o garçom, contudo, serviu as bebidas, impenetrável, e apenas quando terminou, virou-se para mim e perguntou sobre os pratos.
Eu fiz o meu pedido; o chato, enquanto isso, já comia os dedos de fome e raiva. Quando o homem afinal se virou para ele, ele disparou o seu interminável pedido, mas o garçom parecia escrever de forma desproporcionalmente devagar ao que ele dizia.
Por fim, quando o chato parou de falar, ele indagou: “Mais alguma coisa, ou só isso?”, pondo um tom de ironia tal, que até o chato percebeu que era uma indireta.
– Eu tinha pedido um copo sem nada, e ele veio com gelo e limão.
O homem pegou o gelo com a mão, quebrou-o nos dentes e engoliu; e, em seguida, tirou o limão com os dedos sujos e descartou em um pratinho na mesa.
– Mais alguma coisa?
O chato conseguiu superar seu nojo e prosseguiu.
– Ah, eu queria saber se você têm…
– Peraí! – e desapareceu.
– Eu não me conformo! – exclamou o chato. – Esse é o pior garçom que eu já vi na minha vida!
Um tempo aparentemente infinito depois, cuja metade ele gastou reclamando do garçom, um quarto reclamando da vida, e o outro quarto perseguindo os pratos vizinhos como se fosse um cão farejador, o garçom apareceu novamente com os pedidos.
– Por favor, eu queria uma cadeira…
– Peraí, que eu estou servindo! – o outro grunhiu.
O chato se aquietou; a comida foi posta na mesa, o homem indemovível, e, quando se deu por satisfeito, perguntou o que o chato queria.
– Tem uma cadeira um pouco mais alta do que essa?
– Só cadeirão de criança – o garçom soltou.
– E um pouco mais larga?
– Só o banco da praça.
O chato estava indignado com as respostas, mas já não estava mais aguentando ficar com metade da bunda para fora e olhando a mesa na altura do nariz.
– Será que tem alguma almofada?
– Não.
Ele suspirou, inconformado, e olhou para os seus pratos.
– Mais alguma coisa?
– Ei, tá faltando coisa aqui! Cadê a minha porção de charuto? E o kafta? E por que o meu pão sírio é esse pequenininho, e o dele é enorme?
– Cê tá muito gordo, tem que emagrecer – ele respondeu. – Então, achei por bem só pedir um terço de tudo que você pediu.
– Mas que absurdo! Eu quero…
– Peraí!
E sumiu; o chato passou do vermelho para o roxo de raiva.
– Que coisa absurda! – exclamou.
– Ele tá certo, você sabe.
– Como assim? – indagou o meu “amigo”, engolindo três esfirras diferentes ao mesmo tempo.
– Você tá muito gordo mesmo, precisa emagrecer.
– Et tu, Brutus? Então, está bem. Vou fazer um regime. A começar de… Amanhã. Afinal, seria um desperdício deixar toda essa comida aqui.
(Porque um terço do que o chato havia pedido era o suficiente para alimentar três pessoas).
Duvidei totalmente da resposta, especialmente porque ele nem havia se dado ao trabalho de redarguir, e continuamos o nosso jantar, com o chato reclamando da vida, como era seu costume, e do garçom, sua nova atividade favorita.
Por fim, depois de um longo tempo, no qual o chato já havia acabado com seu chá e desistido de tentar chamar o garçom para pedir outro, eu fui pagar no caixa (também havia desistido de tentar pedir a conta). Contudo, ao lá chegar, o garçom-ninja-árabe-bigodudo-mafioso-mal-encarado emergiu da mesa do Buffet e pediu para conferir a conta, para “ver se estava tudo certo”. Quando o chato o viu se aproximar, julgou que era a oportunidade de pedir o seu chá e foi até onde estávamos. Ao chegar, pôde ver o homem riscando a conta e, quando ele se foi, perguntou o que ele havia riscado.
– Ele riscou o valor sem os 10%, fez uma seta até o valor com os 10% – que ficava muitos centímetros de papel em branco depois – e circulou o valor!
– Que insolente audácia! – ele exclamou¹. – Como ousa fazer tal inusitado desrespeito à sua honra?
Tanto eu como o cara do caixa olhamos inconformadamente para o chato.
– Ahm? – ele ainda tentou indagar, mas eu impedi que a conversa prosseguisse, dizendo que pagaria a conta, porém sem os 10%, e no crédito. – Por quê? Você não gostou do atendimento?
– Desculpe, mas não – eu respondi. – Ele foi muito mal educado, trouxe os pedidos errados e ainda por cima ficou enrolando para fazer qualquer coisa.
Os olhos do chato brilharam em adoração, imaginando que eu havia feito aquilo para protegê-lo. O cara do caixa, enquanto isso, perguntou ao outro quem era o garçom, e, à resposta, ambos trocaram um olhar de cumplicidade, como se maus-tratos fossem um lugar comum para aquele homem.
Como se mostraram ser, pois, tão logo eu saí de perto do caixa, o chato me acompanhando, emocionadíssimo por eu não ter pagado os 10%, o garçom surgiu do nada em nossa frente e decidiu tirar satisfações, logo entre as mesas dos outros clientes.
– Então, você não vai pagar os 10%? – perguntou, inquisitivamente, cruzando os braços como se para impor mais respeito.
– Não – eu respondi, simplesmente. – Eu não gostei do serviço.
– Mas aí você me complica! Eu vou ter de pagar do meu bolso!
– Não, não tem não. Não só eu não sou obrigado a pagar, como também o senhor, que não tem a menor obrigação de pagar. E, se o restaurante está cobrando do senhor, o senhor pode entrar com um processo contra ele.
– Mas você não vai pagar porque não quis o cuver ou porque não gostou do atendimento?
– Porque eu não gostei do atendimento – respondi, calmamente.
– Mas eu vou ter de pagar do meu bolso! – ele tentou mais uma vez, desesperado, e, sob uma nova negação, mudou para a fúria. – Então, da próxima vez que você vier aqui, eu vou jogar a comida no meio da mesa.
Eu ia responder, mas nisso a indignação do chato (e acho que um pouco do espírito de Sancho Pança) foi maior, e ele se interpôs:
– Quem você pensa que é, seu mal-educado? Onde já se viu, ficar exigindo os 10%? E ainda ficar ameaçando? Escutaqui…
– Não, você que escuta, seu baixote…
E se pegaram no meio do restaurante; pratos foram derrubados, clientes ficaram assustados, alguns árabes de verdade se ajoelharam para rezar para Alá, alguns mais jovens filmavam tudo, outros garçons correram para ajudar, até voadoras foram trocadas (e, no caso do chato, obviamente, rasteiras). Pouco depois, a polícia baixou e levou todo mundo para a delegacia; eu só fiquei sabendo disso porque, na hora em que começaram a briga, corri para fora, peguei o meu carro e fui embora; em casa, no computador, entrei no IuTubi e assisti a tudo de camarote. Nunca antes o chato havia se mostrado tão fiel escudeiro.
E, na delegacia, pelo que o meu colega me contou, para poder sair, o guarda exigiu 10% da fiança, como gorjeta.
– E sabe o que foi o pior? – ele perguntou.
– O quê?
– O garçom doido não quis dar!
– E aí?
– Tá preso lá até agora! – respondeu o chato, o rosto inchado e desfigurado, mas ainda assim, gargalhando.
Nota do autor, setembro de 2021: de fato, ao receber o meu primeiro salário, eu levei a minha família para jantar. Era uma cantina italiana, não um restaurante árabe, e nós fomos tão maltratados quanto está descrito aí (exceto pela parte de comer o gelo e tirar o limão com a mão). Quase todos os diálogos são verdadeiros, e os maus tratos com relação à cadeira foram direcionados à minha tia-avó, na época, com 92 anos. Eu também não paguei a gorjeta, e ele veio realmente tirar satisfações! Mas, pelo menos, não terminou tudo na delegacia, ele só ameaçou realmente jogar os pratos nas próximas vezes.
¹ Enquanto me esperava, o chato estava lendo Dom Quixote, daí sua expressão estapafúrdia.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais