O Senhor da Chatice – O Retorno do Chato
Estava eu a andar tranquilamente de carro, quando algo berra ao meu lado, e um ser se joga à minha frente; desesperado, viro com tudo a direção para a direita, no que a renger que estava ao meu lado freia, fazendo com que a kombi atrás desta, vindo a 80 por hora, desvie para o lado; curiosamente, como em todo bom filme de ação, havia uma rampa colocada por um trator desmotivadamente logo ao lado, e o carro voa seus belos seis metros (deixando-me, portanto, livre), capota, gira dezenas de vezes e, por fim, pára do outro lado da pista. E, obviamente, explode, ou não haveria a menor graça.
Como todo bom… Samaritano (i.e., curioso), saio do carro e vou olhar o que diabos eu havia deixado de atropelar; o ser se levanta, e eu o observo em todo o seu rotundo desesplendor; dois fundos de garrafa – literalmente – presos por um clipes, servindo de óculos; uma camiseta beibi lúqui rasgada cobrindo-se sabe-se lá o que, uma vez que a pança estava de fora; a calça minúscula, que mais parecia uma cueca, cobrindo outras partes que não deveriam ser mencionadas; sandálias de palha; e um chapéu de plantador vietnamita.
– O que você…?
– Finalmente eu te encontrei! – berrou o Chato. – Graças a Deus!
– O que…? Ah, quer saber? Entra no carro logo e vambora!
– E quem vai dirigir?
– Eu! Quem mais?
– Ai, meu Deus do céu!
– Entra e não reclama!
O redondo por fim entrou no automóvel, colocou o cinto de segurança e pôs uma mão no freio e outro no segurador lateral, mais bem conhecido como putaquiopariu.
Saí cantando pneu de lá, só para fazer cena, conforme os bombeiros vieram apagar o fogo.
(Não, não foi só por cena; eu sou incompetente mesmo, e não canto pneu se eu quiser, só se eu não quiser, como quando se está tentando fugir bem de fininho de um monstro devorador de homens em carros).
– Quando você tirou a sua carta?
– No finalzinho de dezembro.
– Ué, mas você não ia começar logo depois do seu aniversário?
– Comecei.
– E levou seis meses?
– Sim.
– Quantas vezes você repetiu?
– Três.
– Meu Deus, deixa eu sair!!! – gritou ele, tentando abrir a porta, mas sem conseguir.
– Larga a mão de ser chato. Você não tem noção de como é horrível tirar a carta em Sorocaba… No final só tirei em São Paulo… E de primeira…
– Ué, é tão difícil em Sorocaba?
– Quando a sua auto-escola não te ensina absolutamente nada, e o pouco que você aprende por osmose está errado, e você nunca tinha dirigido antes…
– Ah, sim.
– E por onde você andou? O que são estas roupas?
– Então… – começou ele, enquanto nós voltávamos para casa. – Depois do meu casamento, eu resolvi dar uma volta pelo mundo, para ver como pensam os criminosos, e depois que fui parar em uma prisão na China e fui libertado, treinei em um mosteiro…
– Você viu Batman Begins?
– É – suspirou ele, pego em sua mentira. – Passou três meses atrás na China. Tava tendo problema por causa da legendagem. Você vê, eles colocam o que eles quiserem na legenda, e como muitos lá não sabem inglês…
– Ah, tá.
– Eu consegui entender um pouco do filme…
– O que você foi fazer na China?
– Eu precisava refrescar um pouco a mente… Pensar no que fazer… E o regime comunista semiaberto me prometeu que ia me avisar se a Marla viesse, depois que eu falei que ela pretendia matar o cara lá que governa a China.
– Hu?
– O cara que governa a China.
– Então, Hu!
– O cara da China!
– O Hu!
– Uh-huh o quê?
– Aff, esquece. Então você ficou todo esse tempo na China?
– Na verdade, não… Depois que eu fugi como macaco gigante, fui parar na Venezuela. Me fantasiei de médico cubano, e depois de um mês voltei pra Cuba pra cuidar do Fidel.
– Foi você que errou o diagnóstico?
– Ah, convenhamos, tudo é câncer!
– …
– Enfim, depois disso, consegui me esconder dentro de um caixote de charutos cubanos que me levou pra Coreia do Norte. Lá, eu me escondi dentro de um carregamento de boias de borracha…
– Em formas de pato amarelo?
– Sim, como você sabia?
– Ahm… Era meio… Óbvio.
– Enfim, o carregamento extraviou e eu acabei no meio do rio amarelo. Ele é amarelo. E como dói boiar por ele…
– Imagina. Tem só algumas pedras lá.
– Depois disso, uns monges de um dojo me encontraram e tentaram me transformar no ninja branco…
– Um ninja da pesada só saiu agora na China?
– É…
– E o Haru é encontrado no Japão!
– De qualquer forma, eu fiquei em uma hospedaria por um tempo… Consegui juntar dinheiro…
– Roubar.
– Não importa. Consegui juntar e voltar pra cá.
– Ótimo.
– Olha a Meriva! Olha a Meriva!
Parecia que, depois da história, o Chato havia finalmente resolvido prestar atenção no que eu fazia.
– A Meriva tá a uns 100 metros de mim!
– Freia que você vai bater na Meriva! Ela tá diminuindo rápido demais!
– Ela tá vindo da outra direção!
– Olha o ônibus!
– Eu não vou bater!
– Não esquece a seta. Olha a seta! Não fecha o carro… Ah, ele te fechou! Que absurdo! Só tem animal nesse trânsito! Ah, olha o sorocabano! Fecha ele! Fecha! Buzina! Dá sinal de luz! Ei, seu filho da… Vem aqui se você for homem! Ah, ele tá vindo! Foge! Foge!
Neste meio tempo eu tentava desviar freneticamente não só dos carros ao meu lado, mas do ser sacudindo os braços para todos os lados no banco do passageiro. Por três vezes não bati o carro…
Foi então que eu resolvi usar o meu dispositivo anti-sequestrador/chato; em uma curva fechada para a direita, acelerei o máximo que consegui, levantei o meu pino, apertei um botão e…
A porta dele se abriu, ao mesmo tempo em que o cinto de segurança se soltou, o freio de mão desatarrachou e o putaquiopariu foi desenroscado; com isso, o chato voou com tudo para fora do carro e caiu dentro de um canil de rotivaileres.
E voltei tranquilamente para casa depois disso.
Nota do autor, setembro de 2021: não é mentira, eu realmente reprovei três vezes antes de tirar a carta. Eu até tenho uma crônica sobre isso, mas é muito deprimente. Em resumo, nas provas práticas, eu supostamente cometia erros que não havia cometido. Trocando de autoescola (e cidade), resolvemos o problema.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais