O Sovina
Dentre as muitas personalidades marcantes amigas do chato que eu tive o prazer – ou desprazer – de conhecer estava o sovina. Por mais incrível que pareça, ele era um dos poucos com os quais – como eu – o chato não era insuportavelmente chato. Do mesmo modo, comigo e com o chato o sovina não era impossivelmente sovina (não, não se engane, ele nunca pagou nada para a gente, nem nada do tipo. Mas ele fazia menos sovinices).
O fato é que existem dois tipos de sovina no mundo: o que é rico porque é sovina e o que é pobre apesar de ser sovina. O sovina rico é um daqueles que têm grana sobrando, aqueles que desequilibram a concentração mundial de dinheiro e aumentam o IDH de um país porque aumentam ilusoriamente a renda per capita. Entretanto, muito embora tenha dinheiro suficiente para consertar todos os defeitos que o novo piscinão da Rebouças – vulgo túnel da Marta –, ele guarda todo ele para si, para nunca ser usado, em hipótese alguma, jamais, mesmo que o mundo esteja para acabar. É como os colecionadores de moedas, mas levado ao extremo. De qualquer forma, este tipo de sovina é rico justamente por ser sovina: trabalhou muito, ganhou dinheiro a rodo, usa roupas caras pra caramba (na verdade, ele comprou a fábrica para não ter de pagar por elas), anda de limusine (comprou a empresa de limusine, também), helicóptero (uma empresa dele que construiu), hovercraft (para esse, ele tem uma empresa fora do Brasil), tem seu iate e avião (você já entendeu o esquema, né?), mas quando é para coisas simples (por exemplo, tomar um cafezinho ou comer em algum restaurante) ele acha tudo absurdamente caro, de modo que se abstém, de alguma maneira, destas coisas fúteis, mas tão necessárias para nós, pobres plebeus.
Na outra parte da balança está o nosso amigo O Sovina, o qual é pobre como um indigente, não obstante seus esforços para não gastar dinheiro. O fato é que, ao contrário do outro, este nosso amigo não trabalha e se mantém por pura magia de economia. Aqui estão algumas das coisas que ele faz para economizar dinheiro:
– Não toma café da manhã nunca.
– Na hora do almoço, vai para um restaurante de comida japonesa, onde fica esperando as pessoas saírem de suas mesas para rapidamente roubar um ou outro sushi que sobrou na barca – como se sabe, não existe comida mais limpa, uma vez que você só toca com o palitinho o que você vai comer e, mesmo assim, não encosta a boca no palito (ao menos aqueles que sabem comer).
– Como sobremesa, ele se dirige para o seu clube (ele pediu para ser dispensado da mensalidade por já ser idoso, apesar de muito vigoroso, e conseguiu), onde toma o café de bule do restaurante, que é de graça.
– Como lanche da tarde, ele se aproveita das bolachinhas que vêm junto do café que as pessoas pedem e raramente comem. Ademais, se quer um café, basta esperar que um pedido seja cancelado ou a atendente tenha dó dele.
Suas roupas são sempre rasgadas e sujas, o que é um fato notável, e são sempre as mesmas. Como me contou certa vez, foi para o hospital se queixando de febre e lá o pessoal ficou com dó, dando-lhe uma calça, camisa, roupas de baixo e sapato, os quais ele lava com a água de um córrego que corre lá perto (ele lavava no banheiro do clube, mas os seguranças descobriram e expulsaram ele de lá, de cueca, mesmo).
A água que ele consome vem diretamente da chuva, e a luz é a pura luz do sol.
– E como você faz de noite?
– Simplesmente fico no escuro. Além disso, se quero um pouco de diversão, vou para o meu clube, que está sempre aberto.
Ele mora em uma pequena casa, a qual nem eu imagino como ele mantém. Talvez alguém tenha se esquecido dela, talvez alguém tenha lhe dado, mas isso é algo que ele nunca mencionou.
– Querem um pouco de chá? – perguntou-nos ele, certa vez.
Como aceitamos, vi-o rapidamente saindo da casa para pegar um pouco de água acumulada em uma tigela, exposta ao sol para que esquentasse. Depois, foi para o jardim do vizinho e coletou algumas folhas de erva cidreira.
Por mais inacreditável que fosse – magia de sovina, só pode ser –, o sol havia fervido a água com a planta, o que a tornou um agradável chá, o qual ele adoçou com sachês de adoçante ou açúcar retirados daqueles mesmos café dos quais ele tirava as bolachinhas.
– Alguém quer bolacha? Acho que ainda tenho algumas da minha última visita ao clube.
– Não, estou bem – respondi, mas meu amigo chato pediu uma, com goiabada por dentro, faça favor.
Eu realmente não entendo como o nosso amigo sovina consegue sobreviver neste mundo onde o dinheiro reina. Tudo bem, ele é magro como um faquir e suas roupas são muito mais largas e, de algum modo, sua barba é rala, assim como seu cabelo, mas ainda não entendo como ele sobrevive. De repente me passa um pensamento pela cabeça.
– Será que ele não é um sovina rico fingindo ser um sovina pobre?
E passei o dia inteiro imaginando a enorme quantidade de dinheiro que ele deveria ter no banco.

O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais