O Visto Chático
Por esses dias, fui tirar o visto para poder ir aos EUA (para variar, fui sozinho, porque, vocês sabem como é: eu médico, minha esposa, enfermeira, a gente basicamente tem de marcar na agenda para se encontrar). Você pensaria que eles estariam doidos para receber uma horda de brasileiros sedentos por gastar seu dinheiro de férias e décimo terceiro em seu país e que fariam de tudo para que fosse super fácil de isso ocorrer, mas não. Lógico, os EUA sofreram muitos ataques terroristas e justamente por isso são bastante desconfiados. Até mesmo com brasileiros.
E, justamente por isso, você tem um longo processo para conseguir ir para lá, que envolve preencher um questionário bizarro, no qual perguntam se você tem a intenção de matar alguém ou sequestrar o Obama ou qualquer coisa do gênero (e eu me pergunto que louco preencheria Sim para qualquer uma destas perguntas), pagar um valor nem um pouco barato, enfrentar uma longa fila no sol e na sombra para coletar as digitais e, depois, enfrentar uma fila ainda maior para a entrevista.
No caso em questão, lá estava eu, no consulado americano, diante daquela gigantesca fila labiríntica, esperando a hora de entrar e pleitear a chance de, quem sabe, talvez, ser aceito na terra do Pateta.
E do Donald também.
E eu estava tranquilamente esperando, apesar de todo mundo reclamar – e, como sempre acontece, tinha uma mulher chatíssima na minha frente que ficava falando o tempo todo sobre os milhares de lugares para onde já tinha viajado e de como tudo isso era um absurdo e que era ridículo, que só os Estados Unidos faziam os brasileiros se sentirem como vagabundos em fila para pedir esmola ou comida de doação, que nem mesmo no Egito, que estava em guerra, eles haviam sido tão exigentes com ela, e… Vocês podem imaginar o nível de chatice.
Pois bem, da mesma forma que dinheiro atrai dinheiro, chatice também atrai chatice, e lá do outro lado, no começo da fila, estava ele, o senhor de toda a chatice do universo.
– David! – ele gritou, erguendo a sua mão e tentando saltar.
O chão tremeu e eu vi um leve movimento de algo, mas era difícil de enxergar, porque um muro nos separava. E, repentinamente, correndo pelo labirinto e cortando por baixo das faixas de contenção (para ele era fácil, era só abaixar os braços que sequer rasparia em alguma), surgiu um ser ao meu lado.
– O que você está fazendo aqui? – indaguei.
– Estou tirando o visto para os Isteitis! O que mais parece, ora?
– E você vai para lá por que, mesmo?
– Ué, um homem não tem direito de tirar férias?
– Sei. E suas férias são quando, mesmo?
– Em fevereiro.
– Ah, sim. Curioso. E para qual lugar você vai?
– Eu vou cantar uma música, e você vê se descobre. Ca-ham: Quelifornia rier ui comi, raiti bequi uere ui istartedi fromi, Quelifooooorniaaaaaaaaa… Ou Queeeeeeeeeeeee…
– Já entendi, já entendi! – exclamei. – Pelo amor de Deus, pare de cantar! Consegue ser pior do que fânqui!
– Puxa vida, eu aqui, com a minha voz de barítono…
– Acho que baixo é a palavra que você está procurando. Ultrabaixo.
– E você, para onde vai? – ele me indagou, mais para puxar assunto, do que para saber, porque ele com certeza já sabia a resposta.
– Para a Califórnia – respondi, com peso no coração. Será que ainda dava para trocar as passagens?
– Não me diga que você também vai em fevereiro!
Engoli em seco. O chato conseguia comparecer a todas as minhas viagens. Na minha lua de mel, ele surgiu como um bugueiro e ainda ficou no mesmo hotel que eu, em uma suíte nupcial com a sua mãe. Quando eu fui para a Itália, ele conseguiu aparecer em todos os lugares que eu fui: em Roma, ele se fantasiou de gladiador e de cocheiro, para darmos uma volta pela cidade velha ao redor do Coliseu; em Florença, ele fez uma estátua viva e nojenta do que deveria ser Davi, mas mais parecia Baco; em Veneza, ele foi nosso gondoleiro; e, em Innsbruck, na Áustria, ele até mesmo virou instrutor de esqui! Tudo, como ele mesmo disse, através de cursos pela internet.
E como ele havia descoberto todo o meu itinerário? Bem, na minha lua de mel, eu havia contado para ele, como qualquer bom amigo, na maior inocência. Porém, quando fui para a Europa, eu fiz questão de não falar nada, e ele conseguiu descobrir raqueando o computador do meu agente de viagens!
Agora, como ele tinha descoberto desta vez, era um mistério. Eu tinha feito tudo às escondidas, apenas com conversas ao vivo, em bares de segunda categoria, no subsolo de casas de família em bairros não tão de família!
– Não adianta você mentir para mim! – eu respondi. – Eu sei muito bem que você só está indo para lá, porque eu estou indo. Não estamos no mesmo avião, estamos?
– Eu parto no dia… às… no aeroporto de Congonhas. Voo direto para Los Angeles.
Suspirei. Era o mesmo.
– Como raios você descobriu???
– Bom… – ele olhou para os lados, para se certificar de que ninguém estava ouvindo. – Acho melhor eu falar isso aqui baixinho…
– Você sempre fala baixinho – respondi, mas ele não pegou o espírito da piada. Talvez não estivesse à sua altura. Se é que me entendem.
– Eu raqueei o computador do Obama.
– Cumé?
– Isso mesmo. O Obama não tem dossiê e escuta até sobre a Dilma? Ele sabe tudo sobre todos os brasileiros, até os moradores de rua. Não teve nada mais fácil do que entrar lá e ver que você tinha comprado as passagens e que tinha solicitado o visto. Aí, tudo o que eu tive de fazer…
– Ai, meu Deus! – exclamei. Se o Chato usasse todas as suas capacidades para o bem da humanidade! Mas, não, tudo o que ele faz é usá-las para me azucrinar!
Eu não sabia o que dizer. O que poderia fazer para me livrar daquele Chato? Ele iria realmente me acompanhar em todas as viagens que eu fizesse?
Contudo, quando ele estava pronto para redarguir, ele ouviu uma frase mágica.
– Isso é um absurdo! Eu não me conformo!
Olhei para o lado; era a mulher chata, reclamando novamente de qualquer coisa que a houvesse irritado, como talvez o ângulo em que o sol estava incidindo no toldo, que certamente havia sido feito daquela forma para fazer os requisitantes brasileiros de vistos se sentirem como a escória da humanidade. O Chato olhou também, os seus olhos se cruzaram, e eu juro que vi umas faíscas. Imediatamente, ele deu um passo para o lado, quase me derrubando no processo, e começou a conversar com ela sobre o absurdo e os inconvenientes da humanidade.
Quando falaram sobre a necessidade de passar por um detector de metais, ambos bradaram tão alto quanto sua coragem permitia (uns sessenta decibéis, porque o guarda parecia um clone do Stalone, só que negro) que aquilo era um absurdo, ridículo, que ninguém lá ia tentar um atentado.
Porém, quando efetivamente chegou a hora de passar pelo detector, o Chato não cabia, nem de frente, nem de lado, especialmente porque ele teve de estufar a barriga, ao tirar o cinto, para garantir que a calça não cairia. A única solução que os seguranças encontraram foi passar o detector manual em todo o seu corpo, muito cuidadosamente (o que ele murmurou que era um absurdo), e escoltá-lo por fora até o local adequado.
Em seguida, fomos pela pequena estradinha de tijolos amarelos e em pouco tempo estávamos sobre uma nova estrutura, com dezenas de guichês e um mar de gente esperando. Novas reclamações dos mais diversos motivos, em especial o preço dos salgados lá à venda, e ficamos todos esperando, o Chato animadamente conversando com ela sobre as tristezas e injustiças da vida e reclamando toda vez que chamavam alguém em um volume tão baixo quanto o de uma velhinha quase muda.
Finalmente, chamaram nosso lote de passaportes. Fomos para uma terceira (ou seria quarta? Sei lá, perdi a conta) fila, da qual caminhamos lentamente, como bois indo para o matadouro, até os guichês adequados. Lá, faríamos nossas entrevistas, em pé, mesmo (novas reclamações).
O Chato conseguiu pegar a cabine mais demorada; enquanto a minha andou muito, a dele permaneceu parada, e eu podia vê-lo espumando de raiva. Quando me chamaram, eu lancei um último olhar para ele e pensei… Pensei… Só tinha um jeito de me livrar daquela criatura.
– Seu visto foi concedido!
– Obrigado – respondi. – Agora, moço, eu preciso dizer uma coisa… Sabe aquele senhor obeso que está dois guichês ao lado…
– Sei – ele falou.
– Ele me disse que raqueou o computador do Obama.
– Purple code, purple code! All units, cabin 24, repeating, 24 – ele gritou imediatamente, pelo seu fone.
Conforme saía pela lateral, vi um grupo de brutamontes se juntando para segurar o Chato. Como ele era muito pequeno e muito pesado, era quase como tentar segurar um bebê elefante, e o modo mais fácil que encontraram foi pegar a empilhadeira que usavam para descarregar os salgados. Da última vez que vi o Chato, ele estava sendo levado para uma sala de interrogatório, enquanto os seguranças cantavam “Guantanamera”.
Fiquei com certo peso na consciência, mas só até chegar ao lado de fora. Depois de passar a catraca, pensei que finalmente teria férias em paz, e fui assobiando aquela música que o Chato tão desafinadamente havia cantado.
Californiaaaaa!
Nota do autor, outubro de 2021: Chatos à parte, a descrição das desventuras para obtenção do visto é verdadeira: realmente, naquela época, eram filas e filas intermináveis e desconfortáveis. Bem, nada que a gente não goste, não é verdade?
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais