Orgulho de ser chato
– Estou pensando em uma mudança de carreira.
A única carreira que eu conhecia do Chato até o momento era a de me perseguir e usar meu cartão de crédito para pagar as suas contas, além de parasitar a vida da sua mãe. Será que ele iria fazer o contrário, parasitar a minha vida e usar o cartão dela? Ou será que ele iria trocar para outra pessoa?
– Agora, o mundo é digital. Eu vejo como as coisas mudaram com essa pandemia.
A pandemia foi horrorosa, mas, ao menos, teve uma coisa de bom: como tanto o Chato como a sua mãe eram do grupo de risco, eles passaram dois anos longe de mim. Lógico que ele tentou compensar com ligações de vídeo, mas eu diligentemente desliguei todas, dando desculpas esfarrapadas como “estou no banho”, “estou fazendo teleconsulta” ou simplesmente não atendendo.
Mas, quando o governador liberou o uso de máscaras e o Chato já estava com a sua sexta vacina (sim, ele conseguiu dar um jeito de pegar vacinas diferentes sob nomes diferentes e chegou até mesmo a dar uma passeada pelos outros países da América Latina para conseguir doses extras), ele decidiu que ia sair comigo para tomar um café e pôr a conversa em dia. Eu tinha sugerido de fazer isso online.
– Mas, você nunca consegue falar comigo! Não, eu quero ao vivo!
E, assim, encontrávamo-nos em uma padaria aqui na Granja Viana, às seis da manhã de domingo. Isso. Seis da manhã. Domingo.
Não basta ser chato, tem que fazer valer.
– Como assim, mudança de carreira? Em vez de ser chato, agora você vai ser legal?
– Não, não! Eu vou começar a trabalhar com internet. Vou ser “digital influencer” – falou ele, enrolando a língua para falar de um jeito que parecia tudo, menos o significado original da palavra.
Eu mastiguei meu croissant no que deveria ser um olhar de “pelo amor de Deus”, mas que ele compreendeu como “por favor, continue, eu não poderia estar mais interessado”. Sim, preciso trabalhar na minha linguagem corporal.
– Vou fazer um lançamento 360! Um site chamado “Orgulho de ser chato”, que será meu blog, com as opiniões sobre todos os lugares e todos os seus defeitos; um Instagram, @orgulhodeserchato, e um canal do YouTube, com o mesmo nome! Vou postar todas as coisas chatas que existem no mundo com a minha opinião – disse ele, descendo do banquinho elevado diante do balcão em que nos encontrávamos com uma certa dificuldade e ficando em pé. – Chega de ser chato na obscuridade! Agora, é a hora! Chatos do mundo, uni-vos!
Ele concluiu erguendo o punho no alto, mas, como ele era muito baixinho, o punho não foi mais alto do que a minha cabeça, estando eu ainda sentado no banco, e ninguém viu. Exceto, talvez, uma criança que começou a rir, mas pode ter sido por causado do desenho que via no celular, duas mesas para lá.
– Um lugar de união de chatos?
– Exato.
– É tipo um grupo de Facebook?
– Boa ideia, David! Você é ótimo, sabia que essa reunião seria produtiva! Pode ser um grupo de zap, também! E Telegram! Já imaginou? Centenas, milhares, milhões de pessoas em todo o Brasil, em todo o mundo, reunidas para trazer as coisas que as irritam e com orgulho de serem chatas!
Não tinha como isso dar certo. Se fosse gente suficiente, era capaz de fazerem um partido e elegerem o Chato presidente do Brasil!
– Presidente do Brasil! – ele exclamou. – É isso!
Ele estava lendo minha mente? Agora, não era só a Vanusa que fazia isso, mas ele também??
– Me ajude aqui a subir.
Eu lhe dei a mão para ele subir no banquinho. Lógico, a gente poderia comer em qualquer uma das várias mesas vazias, mas o Chato sempre achou que houvesse um certo charme em se sentar ao balcão, por mais que ele sofresse para subir no banco, tanto pelo seu tamanho, como pelo seu peso.
– Vamos lá, vou gravar meu primeiro vídeo.
Ele puxou o celular e começou a fazer um vídeo de si mesmo, com um enquadramento péssimo. Depois de algumas tentativas, viu que não daria certo, então puxou do bolso um suporte retrátil de câmera, que desdobrou, desdobrou e desdobrou até virar um pedestal enorme; ele apoiou a câmera, ajustou aqui, ajustou ali, ajustou iluminação, virou os potes de ketchup, virou as identificações do local, lambeu os dedos e passou nas sobrancelhas, além de tentar dar um brilho na grande careca, ajustou o cinto, respirou fundo, deu uma tossidinha e finalmente começou:
– Caros compatriotas chatos! Em meu primeiro vídeo deste canal, quero mostrar para vocês isso aqui!
Eu tentava cobrir o rosto com a mão, como quem diz “eu não conheço esse cara”, e ele puxou o meu copo.
– Ei!
– Vejam aqui! Este pobre senhor pediu uma água com gás em um copo com gelo e limão, e o que fizeram? Estão vendo? Estão vendo? Vejam que absurdo!
Eu tive de descobrir o rosto e olhar; o que havia de absurdo em meu copo?
– O gelo por baixo e o limão por cima! Todo mundo que já tomou uma água com gás sabe que, se você não colocar o limão embaixo do gelo, toda vez que tomar um gole, a água ficará abaixo do gelo e, portanto, sem contato com o limão! Daí, é o mesmo que tomar uma água com gás com gelo e sem limão!
Ai, meu Deus. Sério?
Mas, por outro lado, agora que ele falou, até que fazia sentido.
– É a coisa mais óbvia do mundo! Se você, assim como eu, não se conforma com isso, deixe sua indignação aqui nos comentários! E, não se esqueça, curta, se inscreva no canal e compartilhe! Até o próximo vídeo orgulhosamente chato!
E, com isso, ele desligou.
Tive de admitir que, apesar de ser tão chato, ele até que levava jeito para essas coisas de internet.
– Agora, vamos para o mais legal, as pegadinhas cháticas!
Vai dar merda…
Ele ligou a câmera e sussurrou.
– Pessoal, vamos para um quadro superespecial do meu canal, as pegadinhas cháticas! Vocês vão ver! Moço, moço! Por favor – disse ele, chamando o homem que estava nos servindo do outro lado do balcão. – Eu gostaria de um pão de forma sem casca na chapa com manteiga na entrada sem miolo, por favor!
Eu revirei os olhos. Não tinha como isso dar certo, sério!
O homem concordou, foi para a chapa e começou a seguir as instruções.
– Sem casca, né? – ele falou.
– Isso! – respondeu o Chato, sorrindo e se controlando para não rir.
Ele retirou a casca.
– Na chapa?
– Exatamente!
– Com manteiga na entrada?
– Exato!
Pegou uma colherada de manteiga.
– Sem miolo, né?
– Perfeito, é isso aí!
O homem devolveu o pão sem casca à embalagem, jogou a manteiga na chapa, enquanto o Chato ria, e, depois que a manteiga derreteu, pegou um prato e, com aquele instrumento que os chapeiros sempre usam para raspar as coisas da chapa e que eu não faço a menor ideia do nome, puxou todo aquele óleo derretido para o prato, que ele diligentemente levou ao Chato.
– Aqui está. Pão de forma sem casca na chapa com manteiga na entrada sem miolo.
A cara de desolação do Chato foi tão, mas tão grande, que eu não aguentei e explodi de rir. O chapeiro também ria de satisfação, enquanto registrava “Porção de manteiga extra” na ficha do Chato. Furioso, o Chato foi lá e desligou a sua câmera, desistindo da sua ideia do canal.
– Talvez, você devesse só evitar as pegadinhas, o que acha?
– Mas, teria sido tão engraçado se tivesse dado certo…
– Para mim, foi muito engraçado – falei.
Mas, não houve o que demovesse o Chato de sua desilusão. Até que, na segunda-feira, ele me ligou.
– David, você não acredita nisso!
Ele me falou para ver uma nova conta do Instagram, chamada @orgulhodeserrabugento. Era a conta do seu arqui-inimigo, o rabugento! E, sabe o que ele tinha postado?
O vídeo da pegadinha do Chato! Sim, ele estava em uma mesa, com a sua netinha, aquela que riu, sabe? Tinha filmado tudo e ainda criticado os “idiotas que ficam fazendo pegadinhas com pobres trabalhadores”.
Estava com 500 mil seguidores, e o vídeo tinha mais de 50.000 visualizações!
– Que absurdooooooo!!!! – gritou o Chato, do outro lado do telefone.
Eu desliguei, claro. E comecei a seguir o rabugento. Não é que ele tinha um canal até que legal, para quem era tão rabugento?
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais