Os Amigos do Chato 2
Há o indeciso. Certa vez fui fazer compras com ele. Meu Deus! Não façam isso, não façam isso nem que seja de brincadeira, nem que você tenha meia eternidade disponível, nem que seja a sua única chance de sair da prisão e ver o sol. As chances de resistir são muito baixas. De fato, eu só sobrevivi porque toda a minha sorte – toda ela mesmo – está virada para eu não morrer. Em compensação, minha sorte com qualquer outra coisa é zero. Aliás, nem zero; é negativa.
De qualquer forma, estávamos nós três, eu e o indeciso e eu – porque, para suportar ele, precisam dois de mim; um para bufar e o outro para suspirar.
– Acho que vou levar esta roupa, o que você acha?
– Acho ótimo – suspirei.
– Não, mas acho que aquela lá é melhor. O que você acha?
– Não sei, acho que…
– Não, não, esta aqui é melhor! Mas acho que eu pareço gorda com ele. O que você acha?
– Na verdade…
– Mas é muito cara. Não, e não combina com os meus sapatos.
– Por que eu ainda respondo?
Eu bufei. Um longo tempo passou até que finalmente fosse decidido qual vestido levar, e quando finalmente estávamos indo embora, o indeciso se lamentou:
– Acho que eu deveria ter levado aquele ali. Acho que vou voltar na loja…
– Não! – berramos nós dois, ao mesmo tempo. – Olha aquela bolsa ali! – foi o grito de esperança.
O indeciso se virou e se arremessou para dentro da loja de bolsas, mas parou na porta. Em qual das duas lojas de bolsa entrar?
Eu bufei, eu suspirei, eu bufei E suspirei. Ao mesmo tempo.
Mas não parou por aí; qual sapato levar, qual cinto levar, em qual loja entrar, com qual vendedor falar, como pagar, o que comer, o que beber, aliás, valia a pena comer fora e não em casa? Como voltar, pegar o ônibus ou não pegar, pegar o metrô, o táxi, carona, andar, correr, ir de bicicleta? Minhocão ou Avenida São João? Francisco Morato ou Eliseu? Voltar mesmo para casa? Será que valia a pena?
– Agora, será que eu deveria ter levado a primeira roupa que eu vi? Acho que ela não me deixava gorda, não¹.
Se alguém estivesse passando pela marginal e olhando para cima pelo teto solar, teria visto dois de mim se jogando (bufando e suspirando) dentro do rio Tietê. Fomos encontrados dois dias depois, boiando na espuma de Pirapora de Bom Jesus. E o nosso companheiro? Ela não se decidiu ainda se valeu a pena comprar ou não.
Contudo, como se não fosse suficiente estes amigos, ainda temos mais algumas célebres pessoas: o mentiroso, por exemplo.
O mentiroso mente para tudo. Jim Carrey até fez uma homenagem a ele naquele filme, mas não daria certo; o mentiroso é como se fosse uma partícula, um elétron, que só fala mentira; se ele é obrigado a agir como um antielétron, ou seja, somente falar a verdade, eles entram em choque, há uma explosão, um monte de luz e tchau-tchau para ele. Portanto, é fisicamente impossível um mentiroso falar a verdade. Na verdade, foi assim que fizeram a bomba atômica: fizeram um político falar a verdade e pimba!, jogaram ele no Japão.
Não é difícil reconhecer o mentiroso. Todo mundo mente em algum nível desde criança, mas o mentiroso extrapola. Já quando nascem, ao invés de chorar falam: “Não fui eu!”. Existe o mentiroso comum, que conta uma mentira vez por outra para parecer mais legal na fita. Aqueles que às vezes exageram um pouquinho no currículo, ou então que falam que beijaram a Gisele Bündchen – apesar de todos sabermos que é impossível – ou até mesmo que falam que beberam um vidro de molho de pimenta inteiro. E não tomaram nada depois.
O negócio vai evoluindo até chegar o momento em que a vida inteira dele é uma mentira. Entretanto, um mentiroso mais habilidoso sofre uma metamorfose, uma metamorfose tanto física quanto mental: ele passa a ter várias vidas. Por exemplo, para um, ele pode ser um cara do intercâmbio. Para outros, veterano de guerra. Vendedor do Wal-Mart. Acionista da bolsa. Presidente da República. Republicano ou Democrata. No fim, ele acaba tendo tantas personalidades, que nem a mãe dele sabe se conhece o filho de verdade ou não. E ele fala tão bem, que você nem suspeita que ele não seja o que ele falou que era. É uma habilidade rara, mas ela consegue fazer maravilhas; por exemplo, para uns, pode ser líder sindical do povo; para outros, um companheiro; um político sério; um ignorante; um supostamente republicano e democrático; um cara legal. Mas não se consegue esconder a verdade para sempre, pois quando tudo se junta sob o foco dos holofotes e todos descobrem que eles realmente haviam conhecido por causa de algum sinal físico – como uma cicatriz ou a falta de um membro, por exemplo – o disfarce cai por terra. Mas o estrago está feito. Vamos ter de lhe pagar a aposentadoria por um bom tempo.
Por fim, há o patriota, mas não vemos muitos no Brasil. Eles andam com bandeirinhas no carro, camisa com o símbolo do Brasil, boné verde e amarelo, fita do senhor do Bonfim das mesmas cores, bola de futebol, calça com as cores da bandeira, tênis e tudo mais MeidinBrasil. Sua música favorita é o hino nacional; seus livros de cabeceira, apenas autores brasileiros. Não tem tevê a cabo, só tevê nacional; usa Internet grátis, tem milhares de pares de havaianas, as legítimas, e fotos do Pelé e Roberto Carlos. Apoia o Brasil como ninguém – e não gosta dos argentinos.
Este é o nosso verdadeiro patriota, mas nós não vemos quase nenhum hoje em dia. Eles normalmente estão no bar, tomando 51, Pirassununga, a verdadeira bebida brasileira, afogando as lágrimas pela Utopia, finalmente caindo na real. A bandeira não mais flutua, as havaianas rasgaram, a bola furou; o jornal na frente, ele finalmente encarou a realidade brasileira. E troca o hino pela Éguinha Pocotó².
¹Nota do autor, janeiro de 2021: Como você pode ver, o indeciso é, na realidade, uma mulher. Não, isso não é nenhum tipo de misoginia, machismo ou algo assim; naquela época, meus principais exemplos femininos eram minha mãe, minha avó e minhas tias. Todas bem indecisas. Mas, talvez, fosse apenas um traço genético, porque conheci muitas mulheres bem decididas depois (principal exemplo, minha esposa, muito mais decidida que eu), e incontáveis homens indecisos. Optei por manter, assim, o gênero feminino, pelo contexto histórico desta crônica, mas com esta explicação.
²Nota do autor, janeiro de 2021: ah, meu caro leitor! Eguinha Pocotó era uma “música” péssima, mas, atualmente, vejo-a com saudosismo. Sim, da época em que apenas ela era uma “música” péssima. Hoje em dia, parece maravilhosa, diante de tudo que meus ouvidos têm de sofrer atualmente.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais