Os Amigos do Chato
Os amigos do chato são muitos – na verdade, eu não sei como. Acho que Deus, a partir do momento que tira certas coisas das pessoas, dá a elas uma paciência interminável em troca – e, não sei se para minha felicidade ou infelicidade, eu tive o prazer de conhecer cada um deles. Aqui está uma resumida lista dos ainda não citados:
O hipocondríaco, um tipo fácil de se conhecer, é normalmente associado ao mão-de-vaca, pois vai ao hospital todo dia – às vezes mais de uma vez por dia – usando o convênio até não poder mais. Normalmente pinta a cara com corretivo líquido somente para parecer mais branco e doente do que o normal, arranca um pouco os cabelos, usa uma caneta colorida daquelas bem grossas para pintar uma mancha roxa sob os olhos – supostas olheiras –, empurra a barriga para frente, o peito para dentro, arqueia as costas, coloca as mãos para frente, sempre dobradas, e treme, sendo muitas vezes confundido com o Gollum ou o Senhor Burns. Entretanto, enquanto os dois são obras de ficção, até onde sei, o meu caro e pseudodoente amigo hipocondríaco é muito real e é o pesadelo das enfermeiras. Chego a pensar até que ele é uma espécie de masoquista, para tomar tanta agulhada e ser submetido a tantas cirurgias¹.
O fato é que o hipocondríaco vai ao médico e pode até fazer uma aposta com ele para dizer que morre logo.
– Eu aposto que vou morrer amanhã, doutor – disse um certa vez.
– Está bem, está bem – concordou o outro, acostumado a ouvir isto todo dia.
– Mas eu vou mesmo! Aposto todo o meu dinheiro como vou!
E este morreu mesmo, enquanto na funerária um funcionário comemorava por haver ganhado quase quinhentos reais no bolão; havia acertado o dia que o hipocondríaco ia morrer. Uma chance em trilhões. Vai ser sortudo assim na China!
E o dinheiro realmente ficou todo para o médico. A única coisa é que ele não tinha nada; afinal, se você acha que acorda somente para não ver o crepúsculo seguinte, você não tem uma conta no banco nem guarda nada sob o colchão. Vive cada dia como se fosse o mundo e queima a grana acendendo um charuto.
Há também o puxassaco – sim, todo junto. Ele é um dos mais conhecidos no mundo, há um em toda firma que se preze, e mantém sempre a mesma fisionomia: baixinho como um gnomo, feio como um também, gordo, de óculos, careca, asmático e com suspensórios (qualquer semelhança com a sua sogra não é mera coincidência; sogras são as maiores puxassaco do mundo – pelo menos para com os filhos). O fato é que ele dá tanto medo de se ver, mas tanto, que sua única chance de continuar sendo um membro da sociedade e não ser chutado para a floresta, uma torre onde toca sinos – aliás, dizem que o corcunda de Notre Dame era o rei dos puxassacos – ou queimado na fogueira por atentado à beleza, é puxar o saco, o que, coincidentemente, é o que ele faz de melhor (na verdade, é a única coisa que ele sabe fazer). Porque, como dizem, saco é que nem corrimão: todo mundo puxa para subir.
Mas o mais engraçado é que o puxassaco puxa o saco de qualquer um que estiver por perto, como um cachorrinho pedindo biscoito. E eles têm toda uma hierarquia: os mais iniciantes, treinados desde pirralhinhos puxassaquinhos, puxam o saco apenas dos superiores imediatos. Conforme você sobe na escala, começa a puxar o saco dos faxineiros, dos chefões, da sogra (nível avançado), do presidente da república (há alguns apenas e recebem o cobiçado título de Dirceu, fazendo tudo, absolutamente tudo que ele fala e concordando fielmente, mesmo que ele fale para tentar parar o vendaval na Ásia do dia 26 de dezembro de 2004²) e, o nível master, faixa preta, mais bã-bã-bã, a maestria da habilidade puxassacal: conseguir puxar o saco de duas pessoas ao mesmo tempo.
Como uma vez aconteceu comigo. O puxassaco, só para variar, estava puxando o meu saco. Mas, naquela vez, eu estava com um amigo que tem uma incrível capacidade de discordar de absolutamente tudo que eu falo (se eu falo que o céu é azul, por exemplo, ele vira e me diz: nem sempre), e foi a coisa mais divertida que fiz: confundir o puxassaco.
– É, o Lula foi eleito… Que horror para nós… – lamentou meu amigo.
– Está corrrrretíssimo, meu companheiro! Sua capacidade de observação é espantosa! Sem dúvida ainda mais afiada do que Sherloque Roumes!
– Mas eu acho que, apesar disso, o Brasil ainda vai ser uma potência mundial no século XXI – falei.
– Está cerrrrrtissímo, meu caro companheiro! – concordou o puxassaco. – Nunca vi uma afirmação tão corretamente colocada! Sua capacidade de previsão é invejável!
– Não vai não! – discordou, peremptoriamente, ele. – Brasil vai é virar a impotência do século XXI! Até nosso viagra é de farinha!
O puxassaco abriu a boca, mas não sabia o que falar. Quem agradar? Quem agradar? Ora, ele era papa na igreja da Santa Puxassaquice, meu bom Deus Puxassaco! Como poderia acontecer algo assim?
Ele suava frio, sem saber o que falar. As mãos tremiam, os dentes rangiam, ele parecia estar tendo uma convulsão e um derrame ao mesmo tempo. Por fim, o puxassaco murchou; os ombros caíram por terra e ele andou pesadamente embora. Estava derrotado.
O pentelho também é, sem dúvida, um tipo peculiar. Peculiar para não dizer um saco. É um daqueles que fica te enchendo o saco o tempo todo, sem parar, sabe? Normalmente eles têm a fisionomia de um cara alto, semi quase esbelto, cabelos encaracolados, olhos castanhos e sardas no rosto. É daqueles que param na frente quando você quer passar. Daqueles que colocam a perna na frente no meio do caminho. Daqueles que ficam te cutucando ininterruptamente até você o olhar. Daqueles que te interrompem enquanto você está falando. Daqueles que desenham no seu braço. Daqueles que te ligam de cinco em cinco minutos. Daqueles que te mandam trocentos mil e-mails. Daqueles que deixam milhares de mensagens na secretária eletrônica³, só para perguntar como está o cachorro. Que querem saber se o super-homem explode no micro-ondas. Que escrevem as palavras em inglês como se pronuncia em português. Que escrevem crônicas. Que mandam milhares de mensagens no MSN⁴ só para fazer o barulhinho. Que batucam na mesa. Que assobiam no elevador, no corredor, que dão a descarga trinta vezes só por causa do barulho. Que cutucam teu ouvido quando você está dormindo. Que enchem completamente, de ponta a ponta, o saco. E ainda enchem por fora porque não cabe mais lá dentro. Uma ameaça à sanidade.
Acho que algumas pessoas conhecem este elemento, pois ele é aquele que vos escreve. Então, se você o vir, corra. Corra e nunca olhe para trás, até chegar ao novo México, pois ele é realmente um pé no saco, mas se recusa a ir para os Estados Unidos⁵.
(Sorte dos estadunidenses!)
¹Nota do autor, janeiro de 2021. Tecnicamente, o hipocondríaco é portador da síndrome de Münchausen. Um detalhe técnico que eu não sabia na época, pois estava no terceiro colegial. De qualquer forma, hipocondríaco é um nome melhor que Münchausen (iriam confundir com mitômanos) e optei por deixar.
²Nota do autor, janeiro de 2021: compatível com a situação política de 2005, mas você pode transferir para quem você quiser, na atualidade.
³Nota do autor, janeiro de 2021: para você, jovem leitor, secretária eletrônica é um aparelho que tínhamos no telefone e funcionava como o correio de voz que você tem atualmente no celular.
⁴ Nota do autor, janeiro de 2021: ainda existe o Messenger no facebook, mas esta era a versão que veio depois do ICQ. Estas duas tecnologias serviram como precursores para o Whatsapp, em uma época em que internet no celular não era realidade.
⁵Nota do autor, janeiro de 2021: hoje em dia, isso não funcionaria mais. O único impeditivo para eu ir para os EUA é a cotação do dólar, mas vontade não falta!
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais