Passeando com o Chato
Um dia eu tive de inventar de ir com o chato ao shopping. Quer dizer, eu simplesmente não tenho mais o que fazer da vida, não é? Como se não bastasse toda a história de vestibular, que finalmente acabou, eu ainda tenho de ocupar meu tempo com o chato… Quer dizer, minha maldição nunca acaba?
Estávamos nós na Saraiva do Shopping Morumbi, e o chato estava olhando um daqueles estandes giratórios dos Livros de Bolso.
– Você já viu isso umas mil vezes – disse eu, olhando em volta. – Será que é tão difícil escolher alguma coisa?
– Não, quando eu escolho eu livro, várias coisas importam: a capa, eu não gosto de capa feia, e sobrecapa só enche o saco, o tamanho do livro, não gosto nem muito grande nem muito curto, o tamanho da letra, odeio letra pequena, mas letra muito grande deixa o livro muito grande ou então, no final das contas, só serve pra enganar, o nome do autor, não gosto de nomes muito longos, porque faz o cara parecer inteligente, nem muito curtos, porque quem tem nome curto é burro…
Eu já ia falar que a culpa não é da pessoa quanto ao nome que os pais lhe deram, mas algo me interrompeu antes que eu começasse.
– EI! – exclamou o chato.
– O que foi?
– O estande girou sozinho!
– Como, girou sozinho?
– Olhaí! Tá girando de novo!
De fato, o estande estava girando sem que ninguém encostasse. Eu, uma cabeça e tanto mais alto que o chato, fiquei nas pontas dos pés e olhei por cima; do outro lado, uma homem girava o estande para ver todos os livros que havia. Expliquei a situação, e logo veio a resposta chata.
– Ele não pode fazer isso! É um absurdo! Quer dizer, você tem que perguntar, olhar em volta antes de fazer isso! E se a pessoa do outro lado ainda estiver olhando?
– Tudo bem, acontece, é só dar a volta e olhar do outro lado!
– Não! Eu estava aqui primeiro! Eu tenho o direito de olhar! – retrucou ele e girou o estande de volta.
Pareceu satisfeito por uns instantes, olhando o mesmo livro pela milionésima primeira vez, quando o estande girou sozinho.
Irritado, ele girou de volta.
O outro homem, por sua vez, igualmente girou.
E, de repente, não sei como, estavam os dois presos ao estande de livros como se andassem em um carrossel, ambos tentando girar ao mesmo tempo e consequentemente girando junto em uma ciranda ridícula.
– Eu estava aqui primeiro! – gritava o chato.
Uma multidão se juntou ao redor, e eu tentei me esconder entre as prateleiras. Quando a situação ficou feia, e os atendentes vieram, tentaram segurá-los, mas de nada adiantou e o carrossel ganhou mais três integrantes, eu comecei a andar para a saída. Quando ouvi um estrondo e, olhando por sobre os ombros, vi de sete a dez pessoas caídas no chão, um estande quebrado e uma enxurrada de livros voando por aí, corri para bem longe. E não mais olhei para trás.
Algo em torno de uma hora e meia depois, o chato me encontrou na praça de alimentação; estava vermelho, bufando, os olhos injetados, mostrando que acabara de se transformar no bizarro-rulque e depois de volta para o chato. Não precisei nem perguntar o que acontecera; estava explícito.
Ele pediu sua comida no Bob’s e veio com a bandeja até a minha mesa, sentando-se e murmurando alguma coisa indecifrável e irritada contra a moça do caixa.
– Olha isso! Olha isso!!
– O quê?
– Esse milquecheique! Eu pedi com extra, mas não consigo nem tomar! Tá mal misturado!
– A graça dele é ser mal misturado. Aí você abre a tampa e fica girando com o canudinho, assim ó…
– Ei, nem vem! Pega um canudinho pra você! Você não vai usar o meu!
– Que que é isso? Virou germofóbico agora? Pelo amor de Deus!
– Você vai babar no meu milquecheique inteiro! Nem vem!
Eu ainda ia responder alguma coisa, mas ele, de repente, começou a gritar com o sachê de quetichupe.
– Por que ninguém nunca consegue abrir esse negócio? Que droga!
Ele ficou algo de dez minutos batalhando com o sachê antes de desistir e comer seu hambúrguer (frio, do que ele também reclamou) sem nada.
Porém, as emoções não paravam por aí; a mesa era coberta por uma toalha de mesa de papel e, conforme o chato tomava o seu milquecheique, uma gota escorreu pelo copo e caiu na toalha. Esta, pra variar, não absorveu na hora, e…
– Argh!!! – berrou ele, e eu tentei fingir que ninguém estava olhando para nós, mas foi inútil. – Olha isso! OLHA ISSO! Que absurdo! Essa droga de toalha de papel não absorve nada! Escorreu tudo em mim! Ah! Minha calça novinha! E que que vai parecer agora? Que eu não consegui me controlar e me aliviei nas calças?
– Ah, pelo amor de Deus, é só uma manchinha! Vai sair quando lavar!
– Ei, quer parar de olhar pra esse lugar?
– Eu tava olhando pra mancha, só pra mancha! – respondi, defensivamente.
Por fim, ele se acalmou, foi ao banheiro, tirou a mancha e, em pouco tempo, estávamos mais uma vez andando pelo lugar. Passávamos pelo cinema, quando ele viu em cara “Se eu fosse você”.
– Sabe, é muito estranho E se fosse você.
– É “Se eu fosse você”. Você tá confundindo com “E se fosse verdade”.
– É?
– Não se preocupa, todo mundo confunde.
– Enfim, é muito estranho… Quer dizer, se o Tony Ramos é homem e tudo mais, e tá no corpo dela, como que ele consegue beijar a si mesmo? Quer dizer, mesmo de olhos fechados, depois de ver um urso daqueles, não sei como ele consegue…
– Narcisismo puro.¹
– Vou te dizer o que isso me parece…
Tampei meus ouvidos para não precisar ouvir mais um comentário discriminatório daquele Chato.
Pouco tempo depois, saímos do Shopping e fomos embora andando. No meio do caminho, havia uma banca de jornal com mais um daqueles estandes rotatórios de livros de bolso.
– Ei, deixa eu comprar o meu livro, no final eu não comprei nada…
O chato parou para comprar o livro, e eu fiquei olhando umas revistas. De repente, do nada, vejo ele brigando com uma mulher para ver quem tinha chegado primeiro lá e quem não deveria ter girado (o que, no caso, era ele, porque ela chegara primeiro).
Mas eu não ia ficar para ver a discussão; quando o dono da banca e mais três caras apareceram e tentaram apartar a briga, eu pulei no táxi mais próximo, gritei um “pra Taboão!” e sumi dali.
Passear com o chato deve fazer mal pra saúde!
Nota do autor, agosto de 2021: acho que já comentei anteriormente, também, mas não custa relembrar: modifiquei alguns comentários escritos originalmente de forma homofóbica. Tecnicamente, isto é bem compatível com o Chato, então, eu fiquei naquela dificuldade: como manter esta característica do personagem, sem ser incorreto? Afinal, não faço a menor questão de ficar disseminando este tipo de coisa por aí. Bem, a solução veio fácil: da mesma forma que hoje eu não gostaria de ouvir o Chato falando isso, fiz com que eu mesmo me recusasse a ouvir, quinze anos atrás, embora, naquela época, comentários deste tipo fossem comuns e considerados como “normais”! Dá para acreditar?
¹ (Nota de 2021) Curiosamente, em Loki (2021), ele beija uma variante sua, que na verdade é uma mulher. É meio que ele mesmo, mas não ele mesmo. Enfim, é confuso, e eu nunca tive a oportunidade de perguntar ao chato o que ele acha sobre isso.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais