Primeiro dia do ano com o chato
Pela primeira vez em muitos anos – e, talvez, pela primeira vez na minha vida – eu fiquei em São Paulo para a virada do ano. Não que eu não pudesse ter viajado – minhas provas só voltam dia 4, mas, mesmo assim, a expectativa de pegar um trânsito infernal e ficar em uma cidade lotada por não mais que uma semana, quando a gente costumava ficar três, jogou um balde de água fria no ânimo da minha família. Com isso, ficamos por aqui mesmo, vendo a explosão de fogos de Copacabana na televisão.
Hoje, no primeiro dia do ano, eu quis comemorar nadando – terminei o ano na água e queria começar na água de novo. Por isso, fui, como de costume, para o meu clube, e adivinha quem eu encontro lá. Não, não foi a Gisele Bündchen (dela, naquele clube, só um cartaz no alto de um prédio); foi o Chato mesmo.
– Ora, você por aqui! – disse ele, aproximando-se. – Feliz Ano Novo!
– Você sabe que, pelo certo, meu ano novo foi em outubro, né?
– Eu sei, mas você comemorou? Não. Então.
Mesmo sem ser chamado, ele me acompanhou em direção à piscina.
– E aí, já fez a sua lista de resoluções para o novo ano?
– Na verdade, ainda não. Não sei se adianta alguma coisa. Não posso planejar nada enquanto não souber pra onde eu vou este ano.
– Bom, mesmo assim, eu fiz a minha. Dá uma olhada.
– “Doar dinheiro para a Caridade”. “Ser mais gentil com a moça do café”. “Entrar no apartamento do Dan Brown e dar um chute na bunda dele”. Me chama quando você for fazer isso. “Pegar um autógrafo do Antonio Banderas”. Você deveria colocar: Não virar mais o bizarro-rulque.
– É uma boa. Tem uma caneta?
Pouco tempo depois, estávamos no banheiro da piscina, onde havia dezenas de pias, nas quais, em vez de sabonete líquido, existia sabonete em pedra.
– Não sei, não gosto deste sabonete.
– Por que não?
– Sei lá, ele parece sujo! Quer dizer, a pessoa sai da privada com a mão imunda, esfrega ela aqui e depois…
– Mas as pessoas passam água no sabonete. Quer dizer… O sabonete é auto limpante!
– Eu sei, mas mesmo assim, é meio nojento…
– Nojento é você pensar que metade dos homens que vão no banheiro não lava as mãos e abre a porta com elas.
Ele fez uma cara de repulsa tão grande e tão impressionante que eu realmente não saberia como descrever. Lavou muito bem as mãos, depois as secou e, sem encostar em nada, parou para pensar em como iria abrir a porta.
– Vai, vamos embora, seu germofóbico! – exclamei, abrindo a porta para ele.
– Sabe que eu tenho um amigo germofóbico?
– Não duvido…
– Você devia conhecer ele.
– Eu… Deixo isso pro ano que vem…
Por fim, chegamos ao vestiário; não havia absolutamente ninguém, o clube estava vazio (exceto por um bando de velhinhos que não haviam ido viajar e praticamente moravam lá).
– Se você quer saber mesmo o que é nojento, é só você pensar que 75% das crianças que entram na piscina se… Aliviam nela – comentou o chato, e foi minha a vez de fazer uma cara de repugnância.
– Vendo por outro lado, não tem como ser pior do que o mar…
– Sabe que eu tenho um amigo escatofóbico?
– Tá, vamos mudar de assunto? – retruquei eu, com um sorriso amarelo. – Como vai a Marla?
– O mesmo de sempre. Quer dizer, ela continua concordando com praticamente tudo que eu falo, mas eu já vi algumas mudanças… Desde que ela virou minha noiva, ela já passou a pensar que é a rainha do lugar…
– Se você morasse no Kings, poderia protagonizar uma série chamada “The Queen of Kings”.
– Ahm?
– Esquece.
– Mas e você ehm?
– Eu só poderia participar do Seturdei Naiti Laivi.
– Não isso! Eu ouvi dizer por aí que você tá acorrentado também… Logo você que era contra isso!
– Acorrentado não, ainda não, e, espero, nunca. A pessoa só se acorrenta quando faz a estupidez de pedir alguém em casamento, como certas pessoas cujo nome eu prefiro omitir…
O chato me mandou uma carranca de arrependimento.
– A ideia foi sua!
– De onde que a ideia foi minha? Não foi você que acabou de dizer que eu sou completamente contra isso?
– …
– Mesmo assim, pra que dia ficou marcado?
– Vrunbrung fuzzumbi.
– Quer parar de remunmurar?
– Ahm?
– Tô lendo Guimarães Rosa demais. O que você disse?
– 25 de maio.
– Ah. Você tá ferrado.
– Eu sei.
Em pouco tempo, estávamos indo para a piscina e, por incrível que fosse, havia exatamente uma pessoa para cada raia, o que significava que a gente teria de dividir com desconhecidos (havia apenas cinco raias; o resto da piscina não tinha raias e é impossível nadar em partes não raiadas da piscina). O chato depositou suas coisas em uma raia, e eu, em outra. Porém, quando eu já estava me preparando para pular, ele me segurou com sua costumeira reclamação.
– Olha isso!
– O quê?
– Olha isso!
– O quê?
– Ela colocou as coisas dela do lado direito da baliza, tá vendo? O flutuador e a prancha? Mas olha onde ela tá nadando! Do lado esquerdo!
– E daí? Qual é o problema? Ela pode nadar do lado que ela quiser.
– Não! Se você coloca as suas coisas do lado direito, você nada do lado direito. Se você quer nadar do lado esquerdo, você coloca as suas coisas do lado esquerdo!
– Ai, meu Deus! Quer trocar de raia comigo? O cara aqui colocou do lado certo.
– Não, não! Isso aqui é um problema dela, e ela precisa aprender isso! Minha senhora, minha senhora, por favor…
– O que foi? – respondeu uma velhinha de noventa e tantos anos, que valentemente havia cruzado os cinquenta metros da piscina em não mais que seis minutos e meio.
– Olha aqui, quando você coloca as coisas do lado direito, você nada do lado direito. E quando você nada do lado esquerdo, suas coisas ficam do lado esquerdo, está vendo? A senhora está fazendo do jeito errado!
– Me desculpe, mas eu tenho um problema de equilíbrio e só posso nadar deste lado…
– Então coloque as coisas deste lado!
– Mas eu tenho um problema de Alzheimer que me faz esquecer qual lado é qual…
– Então como você sabe em qual nadar?
– E eu tenho catarata, está vendo? Não consigo ver nada sem os meus óculos, mocinha.
– Ah, não me vem com essas desculpas de velha!
A pobre mulher pareceu chocada com isso, enquanto eu tentava fazer o chato ficar calmo.
– Deixa ela. Troca de raia comigo, vai.
– Não, não, não! Por que os velhos sempre têm privilégios? Qual a utilidade deles pra sociedade? Eles vão todos MORRER! Qual a ideia de dar todos os direitos pros velhos?
– Quer parar com isso! Isso é geratofobia! É crime! Eu acho…
– Isso é… Um absurdo!
Ah, não!, pensei. Um absurdo. Era assim que começava a transformação.
– Lembra da sua lista de resoluções do novo ano! Não virar o bizarro-rulque! Não virar o bizarro-rulque!
– Eu não vou virar o bizarro-rulque. Eu não vou virar o biza… Mas isso é um ABSURDO! Ela tá nadando DE NOVO do lado ERRADO! Ah!!!
De repente, o chato começou a ficar rosa; imediatamente, eu peguei uma boia de salvamento, prendi a velhinha nela (a pobre coitada não estava a mais de um metro da borda), puxei ela para fora, mandei ela fugir o quanto antes, prendi o Chato com a boia, arremessei-o dentro d’água, pedi ajuda a Deus e saí correndo. Salve-se quem puder!
Nota do autor, Agosto de 2021: Eu provavelmente já comentei que tinha alguma dificuldade em concluir as crônicas do Chato depois de ter criado o Bizarro-Rulque. Na verdade, o Chato era basicamente um compilado (extremamente exagerado, claro) de coisas que me incomodavam (às vezes, nem tanto, na verdade eu nunca liguei para sabão em barra). A ideia do casamento, por sua vez, não me incomodava tanto, mas fazia sentido eu ser meio que o contraponto do Chato. Tanto não me incomodava, que me casei em 2012!
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais