Sentença de Morte na Festa de Pessach
– Ah! Quequiéisso?
– Quequiéisso digo eu! Você entra do nada sem avisar! – exclamei, olhando para o chato, que entrara pela porta sem mais nem menos, pegando-me desprevenido, apenas de cuecas samba-can(l)ção. – E se eu estivesse sem roupa?
– E daí, qual o problema de eu te ver sem roupa? Você é homem, não é? Tem vergonha do seu próprio corpo ou algo assim?
– Não tenho vergonha, mas também não tenho vontade de ficar exibindo ele por aí!
Ignorando isso, o meu companheiro de encheção de saco se jogou no pufe, suspirando.
– O que foi agora? – perguntei.
– Não adianta. Eu tentei de tudo, mas não tem como atrasar a data do casamento…
– Então…
– Sim. Dia 25 de maio eu estarei oficialmente morto.
– Gente do céu!
– É horrível, horrível! – choramingou o chato. – Agora eu sei como aquele pessoal do corredor da morte se sente. Naquele filme… A milha verde…
– À espera de um milagre.
– Isso. É exatamente assim que eu estou. À espera de um milagre. Eu não sei mais o que fazer! É como saber que você vai morrer, e o pior, eu sei o dia e a hora!
– Então, aproveita a vida enquanto pode. Já que você vai morrer mesmo… – comentei, já vestido e arrumando a última mala. – Agora, você veio até aqui só pra me dizer isso? Você sabe que eu tô voltando pra São Paulo por causa do Pessach, né?
– Se preocupa não, eu volto com você. E eu não me importo de te fazer companhia na festa…
Como se eu tivesse chamado…
– Então, eu vim aqui, na verdade, pra te pedir um favor.
– Vixi, lá vem!
– Você pode ser o meu padrinho, no casamento?
O chão se desmanchou sob meus pés. Padrinho deles?? E ter de aguentar a Marla todo dia? E o chato também? E se eles se mudassem pra cá? E se eles tivessem filhos? Eu ia ter de ser a babá dos Marlochatinhos!!!!!
– Pelo menos eu ganho um anel pra colocar no dedo mínimo? – barganhei.
– Não. Mas eu deixo você carregar as alianças e fazer um discurso.
– Fazer um discurso? Ah, não…
– Ah, sim! Você escreve bem pra caramba! Eu já li o que você escreve!
– Comparado com o quê? Paulo Coelho?
– Não importa! O seu discurso vai ser ótimo, eu tenho certeza!
– Mas você não vê o que você vem me pedir? Eu tô em entressafra de inspiração! Minha pleura tá com defeito!
– Ahm?
– Prova demais, esquece. Eu tô sem inspiração! Não consigo escrever nada!
– Você tem um mês e pouco pra fazer isso. Eu sei que você consegue.
– Não basta você afundar, ainda tem que me levar junto pro fundo do poço? Quem é você, o Roberto Jefferson??
– Você não tem prova agora? 13:30? – me interrompeu ele, como de costume.
– Vixi, é mesmo! Tô atrasado! Já volto!
(De fato, esta crônica está sendo escrita em tempo real. São 13:14 e eu estou atrasado para a prova. Portanto, perdoem a ausência do autor que, num ímpeto inspirativo, começou a escrever quando não devia e agora tem de se ausentar. Até as 15:30, mais ou menos. Crônica em tempo real… Fala a verdade, isso é que é Chou de Realidade!).
(15:10, acabo de voltar da prova).
Ao voltar, encontro o chato deitado no pufe, comendo uma bacia de pipoca (feita, claro, com as minhas coisas e sem ele se dar ao menor trabalho de lavar), vendo Os Incríveis.
– Então, como foi na prova?
– Não sei, acho que bem… Tava fácil até… Tirando a parte do PAS¹, que eu não tive praticamente nada e tive de responder do jeito mais genérico possível…
– Uhm, ótimo… – foi a resposta, sem dar o mínimo para o que eu falara, porque estava na parte do Gurincrível. – E então, pensou na minha proposta?
– Eu já disse, eu tô sem inspiração! E quer fazer o favor de lavar a louça?
– Mas eu quero você como o meu padrinho! Você é o meu melhor amigo! Vai me dizer que eu não sou o seu melhor amigo?
– Prefiro me abster da resposta.
– É sério!
– Tá bom, eu vou pensar no seu caso… Mas será que dá pra se arrumar? Eu quero chegar logo em São Paulo!
– Tá certo, tá certo.
– E lava a louça que eu já arrumei a casa inteira!
– Mas eu não sei lavar!
– Se vira!
Eu arranquei a tigela de pipoca (saída sei lá eu de onde, porque, até onde me consta, eu não tenho nem tigela nem milho) das mãos dele e o empurrei para a cozinha. Depois, fui me arrumar, ainda pensando naquela proposta estúpida. Imagine, ser padrinho dos dois… Que loucura…
(15:13, acabo esta parte e preciso enviar por e-mail² para São Paulo, onde pretendo escrever sobre a viagem de ônibus e o pensamento na proposta).
(18:10, chego em casa, mas preciso de uma pausa para jantar, claro, e às 18:42 eu me sento diante do noutibuqui para continuar a minha aventura).
Quando passamos pela rodoviária, o chato estava impressionado com tudo o que fora feito no lugar.
– Impressionante tudo o que fizeram com isso, não é?
– Fiquei impressionado com a rapidez com que reconstruíram tudo… Afinal, quanto tempo faz que deu a louca em você?
– Não sei nem quero saber. Vamos comprar as passagens?
– Por que tanta pressa?
– É que eu tô com fome.
– Mas a festa é só às nove!
– Eu sei.
– Por que você não come nada então?
– Porque eu vou comer lá!
– Você já foi em alguma festa de Pessach?
– Não.
– Então tá explicado.
– Por quê?
– A comida é horrível, você vai ver.
– Mas não tem falafel?
– Não.
– E chalá?
– Também não.
– O que que tem então?
– Matzá.
– O que é isso?
– Uhm… Já comeu isopor?
– Ahm… Não.
– Bom, isopor tem mais gosto que matzá.
– Ah… Agora, me diz, por que você tá andando com o jaleco pendurado?
– Não coube na mala.
– Ah, fala a verdade, é só pra se mostrar né!
– Não! Ele não coube na mala! Só sobrou carregar no ombro!
– Mas ele tá limpinho, pra que você tá trazendo?
– A Jora, a caseira de Peruíbe, quer ver.
– Ah, sei, sei! Você quer só é mostrar, né?
– Ah, tá bom, tá bom! – concedi. – Eu quero mostrar! É mó legal!
Com isso, o chato começou a pedir para provar o jaleco. Eu entreguei pra ele, mas ficou extremamente longo na altura e curto na circunferência, de modo que ele não conseguia nem sequer fechar o botão e andava com ele arrastando pra todos os lados, sendo uma coisa ridícula (praticamente um doutor da alegria).
– Pára com isso, você vai sujar ele todo!
Tirei o avental da criança e me dirigi para a mulher do caixa, enquanto o chato olhava desejoso para os lanches expostos.
– Pelamordedeus, compra algo pra comer!
– Mas eu quero comer lá!
– Você vai morrer de fome até lá!
– Melhor, aí eu como mais lá!
– Mas a comida é horrível… Ah, esquece. São duas passagens pra São Paulo. Com seguro.
– São 28 reais – disse a moça do caixa.
Pegamos a passagem e fomos até onde o ônibus estava esperando para partir, de frente para uma pequena placa de concreto.
– Ah, não, pegamos assentos separados!
– Mas não tem problema.
– Como, não tem problema?
– É só sentar em outro lugar.
– Mas e se nós estivermos sentados no lugar de alguma outra pessoa?
– Aí ela senta em outro lugar.
– Mas aí, e se ela sentar no lugar de outra pessoa?
– Aí…
É melhor deixar como está…
– É, você tá certo, é melhor sentar nos lugares marcados – comentei, suspirando, e segui para o meu lugar, número 17 (o chato ficou no 24).
Por causa disso, a viagem foi tranquila. Excetuando-se, claro, o fato de que a bateria do meu Aipódi (não é um Ipod, ele é da Samsung, leram?) acabou bem na hora que eu sentei na poltrona… De resto, foi tranquilo. Foi só engraçado ver um gordão tentando sentar na poltrona do lado do chato, os dois se esmagando como uma baleia e um elefante tentando entrar em um carro de palhaço.
– Mas eu tava aqui primeiro!
– Mas esse é o número da minha poltrona!
– Mas você não cabe aqui! E eu tava aqui primeiro! Você tem que ir para outro lugar!
– Mas eu não posso sentar em outro lugar! E se outra pessoa tiver comprado a passagem praquele lugar?
E foi assim a discussão que eu ouvi. O ônibus partiu, os dois se mutusmagaram na poltrona, e, até onde sei, ficaram assim o caminho inteiro até São Paulo, o que foi uma coisa cômica. Uma pena que a câmera também estava sem bateria, senão eu teria tirado fotos…
No fim da viagem – durante a qual eu fiquei lendo a Veja desta semana, contando a história da Suzane³ – quando entramos na marginal, uma coisa bem interessante, digamos assim, aconteceu.
O chato estava deitado sob o gordão, ambos dormindo, quando a baba do grandão escorreu nele. Foi o tempo de a gotícula cair nos óculos do meu amigo kleinlich⁴ para que ele literalmente voasse como uma bala de canhão para a outra cadeira, desinfetando os óculos enquanto tentava se levantar.
– QUE NOJOOOOOOOOO! – berrou, correndo feito um desesperado para o banheiro do ônibus, onde teria terminado de desinfetar, se, dois segundos depois, não tivesse saindo de lá berrando: – QUE NOJOOOOOOO!
A porta aberta, um fedor horrendo se propagou pelo ônibus, e um velhinho salvador suicida saltou de sua poltrona para fechá-la, enquanto todos prontamente abriam as suas janelas.
Cinco minutos depois, o fedor já controlado, percebi que o chato estava no banco atrás do meu, escondido sob uma espécie de cobertor, hiperventilando pelo desespero do que acontecera.
– NoOojoOo… – gemia ele.
– Tá bom, tá bom, senta aqui do meu lado, mas pára com isso!
E o meu companheiro de viagem se sentou ao meu lado.
– Pensou na minha proposta?
A recuperação fora impressionantemente rápida.
– Pensei.
– Eeeee?
– Não. Escolhe outra pessoa. Eu tô sem inspiração, já disse!
– Mas em um mês você consegue alguma coisa!
– Não sei. Pode ser que não. Eu não arriscaria.
– Mas você consegue escrever uma coisa mesmo sem inspiração!
– Mas ela fica forçada. Sem alma. E com muitos “mas” repetidos no começo das frases.
– Ahm?
– Nada.
– Por favoooor! Eu já tô me casando por culpa sua!
– Ah, nem vem! Você vai se casar porque quis! Ninguém mandou fazer isso!
Ele não respondeu; o ônibus havia parado de vez na rodoviária, e o chato levantou em um ímpeto, correndo para fora do ônibus.
– Sai antes que o gordão obstrua a passagem! – berrou ele, mas já era tarde; o gordão já ocupava o corredor em toda a sua imensidão.
Eu, porém, não ia me deixar ser preso por causa disso (sim, caso você tenha percebido, há uma disparidade no número das poltronas e na localização gordão/eu. O fato é que nos ônibus de Sorocaba, a numeração começa de trás, não sei por quê. Tudo bem, é brincadeira. Foi um erro meu. Isso é pra vocês verem como nem todo autor é perfeito…) e, utilizando-me de toda a minha agilidade, toda a minha inteligência, dei um bom espaço, respirei fundo, pronto para um salto por sobre ele (eu tinha um vão de uns 30 centímetros entre o pico de gordura mais alto e o teto, acho que dava para passar), quando tive uma ideia melhor.
– Eu sou médico, preciso passar! Tem uma emergência! – exclamei, colocando o jaleco.
Foi o suficiente para que todos abrissem alas e o balofão se espremesse dentro de uma poltrona minúscula.
Do lado de fora, puxei o chato pelo braço e corri até a escada, para aumentar a veracidade do negócio. Lá, paramos, o meu seguidor fiel ofegante.
– Então, como vamos fazer?
– Eu vou pra casa – respondeu ele. – Depois, você passa pra me pegar?
– Por que eu passo pra te pegar? Você tem noção que você não só se convidou pra uma festa que você não tem nada a ver como ainda tá pedindo carona pra mim?
– Mas eu moro no meio do caminho! Não custa você passar pra me pegar!
– Ah, tá bom… Aliás, eu nunca vi a sua casa, né? Quando você vai me mostrar ela?
– Uhm, não sei…
– E um amigo meu me perguntou… Você tem um bichinho de estimação? Se fosse pra ter um, qual seria⁵?
De repente, contudo, alguém deu uma trombada no chato, derrubando-o no chão. Eu o ajudei a se levantar e, pouco depois, ele tateou os bolsos, percebendo que algo faltava.
– A minha carteira! Ele roubou a minha carteira! – gritou. – Mas que absurdooo!
Com isso, o diálogo foi dado por encerrado e ele correu atrás do homem por toda a rodoviária. Eu, enquanto isso, desci as escadas e fui me encontrar com o meu pai, que me levou para casa sem maiores incidentes (só o fato de que não toca nada de bom no rádio, impressionante…).
(São 19:25, e eu estou parando de escrever agora. Mais um pouco, eu tenho de sair para ir para a festa… Ainda bem que eu já jantei…).
(0:44, acabo de chegar da festa, com várias coisas anotadas em um papel. Aí vai…)
– Pode parar aqui.
– O que, tem certeza que pode parar aqui?
– Tá vendo alguma placa que diga que não pode?
– Não, mas é meio na curva… – respondeu o meu pai, dirigindo o carro.
– Vamos chamar ele logo.
– Liga no celular.
Eu ligo para o chato, em poucos segundos ele passa pela porta de entrada do prédio e vem para o carro, cumprimentando-nos.
– Mas eu ainda acho que não pode parar aqui…
– Então sai logo daqui!
Com isso, ele vai embora, o chato assobiando a musiquinha do celular.
– Droga, agora não sai mais da cabeça!
– Que música é?
– O tema da Jeannie.
– Ah… Não sai da cabeça mesmo…
– E eu não sei? Maldita música!
Obviamente, por ser chato, ele continuou assobiando.
– Pelamordedeus, alguém liga o rádio! – exclamei.
Com isso, minha mãe ligou o rádio, o que não significa de todo que algo tenha acontecido; estava sem antena e não conseguia pegar nada.
– Coloca um cedê! – disse o meu autoconvidado. – Cazuza!
– Não! Gâns éndi Roses!
– Cazuza!
– Armas e Rosas!
– Shh! O carro é meu e eu coloco o que eu quero!
Por motivo de força maior, fomos para a casa da minha tia ouvindo Garfi Bruquis.
– E o que você fez com relação à carteira?
– Ah… Nada demais. Eu persegui ele até a avenida lá embaixo, ele derrubou um policial e roubou um cavalo, fugindo, eu também roubei um cavalo…
– Policiais usam pôneis?
– De qualquer forma, persegui ele até que um ônibus bateu nele…
– Você sabe cavalgar? Desde quando?
– Desde que a Marla me levou prum Hotel Fazenda. Enfim o ônibus bateu nele e… Não, não vai pela rebouças! – opinou o calvo, do nada, praticamente agarrando o meu pai pelo pescoço do banco de trás, ignorando completamente a história (eu nunca mais saberia o que se passou no incidente cavalo/ônibus, o qual não foi nem citado no jornal. É por essas e outras que eu tenho minhas dúvidas sobre as histórias chatescas). – Eu sei um caminho alternativo!
– Mas eu não quero…
– Rápido, o meu caminho alternativo é melhor! Entra aqui à direita! – falou, e meu pai obedeceu. – Agora à esquerda! Segunda à direita! Terceira à direita… Faz esse balãozinho… Segue reto e…
Saímos exatamente no mesmo lugar.
– Eu vou fazer o caminho que eu quero! – exclamou o meu genitor (fala sério, isso que é palavra… Para vocês verem como um escritor sofre para usar os sinônimos e evitar repetição).
E assim seguimos ao som de Stendim Autissaidi de Faire, o chato ainda cantarolando a música da Jeannie.
– Argh! Maldita! Não sai da cabeça!
– Pensa na morte da bezerra – comentei, e ele não conteve a risada, antes de perceber os termômetros da rua marcando temperaturas diferentes.
– Você já reparou que nenhum deles marca a mesma temperatura?
– Ahm?
– Os relógios de rua. Cada um marca a temperatura que bem entende.
– Talvez porque não seja a mesma temperatura em cada lugar.
– Mas não tem lógica! Eu quero dizer, eles estão separados por dez metros de distância, como que pode ter 5 graus de diferença? É um absurdo! As pessoas têm de ter o direito de ver as temperaturas corretas…
– Lá vem!
– E ainda é feito tudo pela…
– 5… 4… 3…
– Mesma firma! O mesmo cara faz e ainda tá tudo errado! É um absurdo!
– 2… 1…
– Se quer saber…
– 0… Foguete de merda lançado com sucesso!
– Eu tenho um sonho! Um sonho no qual as pessoas podem olhar para os relógios de rua e verem a temperatura correta! No qual as temperaturas são as mesmas quando devem ser as mesmas! No qual não tem tanta discrepância assim! Um sonho no qual podemos viver em paz!
– Tá bom, ô Martin Luter Quingui.
O chato se calou, de braços cruzados, irritado e bufando do meu lado. Pelo menos, havia esquecido a musiquinha. Até que…
Tan-nam, tan-tan-tan-tan-tan-taaan, tan-nam, tan-tan-tan-tan-tan-taaan…
– Maldita música! – reclaexclamerrou, desesperado, atendendo o celular só para ela parar. – Alô? – vociferou.
– Alô? De onde falam?
– Quem é?
– De onde falam?
– Me diz primeiro quem é! Você que ligou!
– Mas eu perguntei primeiro!
– Não importa, eu sou o dono do celular! Me diz quem é ou eu vou desligar!
– Mas eu perguntei primeiro! Você tem de responder, não eu!
Enfurecido, ele bateu o celular em si mesmo ao fechar a tampa, com um ar de triunfo.
– É assim que se trata os mal-educados que…
Tan-nam, tan-tan-tan-tan-tan-taaan, tan-nam, tan-tan-tan-tan-tan-taaan..
– Malditaaa! Quem é? Eu não tô escutando. Quem é?
– Agora eu sou o Pato Donaldiiiiiii!!! – esganiçou uma voz finíssima, antes de implodir em risadas que puderam ser ouvidas do outro lado do estádio do Pacaembu.
– Que absurdoooo! – praticamente chorou o chato, enquanto eu, por minha vez, chorava de rir.
E ele ficou emburrado o resto do caminho, assobiando a música tema de Jeannie é um gênio inconscientemente e soltando gritos indefiníveis de inconformação toda vez que se pegava fazendo isso.
(1:05, agora é hora de ir dormir. Tenho coisas para fazer amanhã. Se tiver tempo, vou continuar a história… Se não, este é o final.)
(8:10, já acordei e tomei o meu café da manhã. Estou, na verdade, com uma caneca de suco de laranja com mamão aqui do meu lado, esperando para ser tomada. Apesar de não ter a menor ideia de como vai ser a crônica, algo, não sei o que, me impulsiona para frente, me faz escrever, move os meus dedos sem eu ter a menor ideia de como…)
– Como que a rua tá toda vazia? – altoperguntamos eu e o meu pai. – Cadê todo mundo? Não pode ser. A gente não pode ter chegado antes de todo mundo!
– Olha, um palio branco! – anunciei. – O Lulo já chegou! Como que o Lulo chegou antes de todo mundo??? O carro dele é de Cotia? Será? Quais são as chances de ter outro Palio branco parado bem aqui, hoje à noite? (Caso não saibam, o Lulo é geralmente um dos últimos a chegar).
– Então, você pensou no meu pedido? – interrompeu o meu companheiro poliocular, fazendo o que sabia fazer melhor: perturbar a ordem supostamente estabelecida.
– Pelamordedeus, eu já te disse que eu tô sem inspiração!
– Ah, não vem com essa! Eu já disse, não precisa ser uma obra de arte, o importante é que você escreva…
– Sem inspiração não fica bom. Você não entende. Você já escreveu alguma coisa alguma vez?
– Não.
– Então você não sabe como é desesperador não ter inspiração. Parece que algo fica faltando… É como se a coisa que você sempre fez com a maior facilidade do mundo ficasse impossível. Como se você não conseguisse mais fazer nada. Como se a sua outra metade faltasse… É horrível. Simplesmente horrível.
Paramos de frente ao prédio, e meu pai apertou a campainha.
– Você se sente sozinho… Abandonado, esquecido, com frio… É como se você perdesse a sua alma. Humgf! – calafriei.
Como de costume, o Brás abriu a porta para nós.
– Casagrande?! – interroclamou. – Que que aconteceu com o teu cabelo? Foi rapado? (Foi o próprio Brás que percebeu a similaridade eu cabeludo/Carlos Casagrande, e foi realmente engraçado o fato que na faculdade também tenham percebido… Ah, sim, quem é o Brás? Nem eu sei exatamente. Só sei que ele tá sempre na casa da minha tia…).
-É né… (– e eu ainda ouviria isso umas trinta vezes noite adentro).
Subimos para o apartamento da minha tia, com a porta sempre aberta – um por andar é um sonho –, a mesa grandona no meio da sala, mais duas pequenas espalhadas, abarrotadas de pratos finíssimos (nos dois sentidos) e comidas judaicas dos mais diversos tipos (e, desculpe-me a minha tia e toda a comunidade, os mais horríveis gostos). Boa parte da família já estava sentada à mesa, quando entramos.
– O que eles têm contra falafel? – comentei baixinho para mim mesmo. – Afinal, se eles tinham peixe e fígado e kneidel (que é uma sopa com bolinhos, notem) e sei lá eu mais o que no deserto, por que diabos eles não podiam ter falafel?
– Ei, viadinho! – ouvi pela multidão, e claro, lá no fundo da mesa estava o Lulo, com sua careca do tipo aeroporto de mosquito e o cigarro na outra mão[6].
Era costume ele me chamar de viadinho; uma vez ele virou para mim, perguntou o que eu estava tomando, e disse que chá era coisa de viadinho. Não muito tempo depois, em um restaurante japonês, ele pediu chá, claro. E assim vai, normalmente, ele me chama de viadinho e pouco depois faz a coisa que criticara. Freud explica?
– Prova um Matzá – ofereci para o chato.
Ele o colocou na boca, mastigou e, de repente, cuspiu tudo para fora, sujando o aeroporto insetal do meu familiar com questões internas de sexualidade.
– Mas que coisa horrível! Não tem gosto de nada! Parece…
Então, de repente, eu a vi; uma deusa entrando pela porta, brilhando como nunca, vindo em minha direção. Ela não caminhava; deslizava pelo chão, chegando suave como uma brisa de primavera, refulgindo como o primeiro raio de sol em um dia nevado, como, como, como… Não havia palavras. Era tanta coisa de uma vez só que você se perdia.
Ela entrou na minha cabeça, então, e eu tive todas aquelas sensações características; era como se todas as engrenagens enferrujadas do seu corpo se pusessem a funcionar, como se fizessem cócegas na sua orelha, como aquele longo abraço, como ficar debaixo de uma coberta quentíssima lendo um livro e tomando chocolate quente (com café!) no inverno, como ficar na cama em uma manhã chuvosa, como, como, como…
Eu mesmo calafriei, desta vez, tremi, em estado febril, tendo alucinações, o corpo inteiro se remexendo de prazer – era o chamado Orgasmo Escritor (OÊ!) pós-Inspiração(pI), OEpI.
– Alguém me dá uma caneta! Uma caneta! Por favoooor! Um papel e uma caneta!! Rápido!!
Desesperado, corri pela casa até conseguir a caneta e, dispondo dela, sem nem mesmo ligar para o papel, comecei a escrever na minha mão, depois nos braços (ambidestria é útil só pra isso), e, como não tinha mais espaço, fui até o banheiro, escrevi no rosto me olhando no espelho (agora só consigo ler de volta no banheiro, e estou há meia hora tentando decifrar os hieróglifos), tirei a camiseta, escrevi nela inteira, depois na toalha de mesa…
A inspiração havia sido tão grande que eu não só consegui escrever o discurso para o casamento do chato, como ainda fiz uma caricatura (grandemente aceita) do Mauro (algum parente distante meu) e outra do Lulo (que não ficou tão boa, mas…).
Não preciso dizer que o meu companheiro de roupas apertadas e densidade de buraco negro ficou hiperventilando (sim, eu gostei dessa palavra) de tão feliz, e minha tia, claro, queria me matar por eu ter rabiscado toda a sua toalha tradicional de festa de Pessach.
O resto da festa foi um limbo para mim, completamente ofuscado pela luz da inspiração. Só sei que, quando voltava para casa, estava mais feliz do que nunca. Estava completo mais uma vez.
Até que a lua mudasse de novo e eu perdesse a inspiração…
(São 8:45 e eu acabei de acabar a crônica, com uma caneca de café com leite ao meu lado – o milagre da transmutação do suco em leite mais uma vez opera. Como vocês podem perceber, inspiração ou não, eu continuo com problemas de final… Fazer o que né? Agora vou reler… E publicar parte por parte no blog… Ah, sim, como é um Chou de Realidade, não podemos esquecer disso:
Se vocês acham que o chato vai recuperar a sua carteira, disquem 0800 15301.
Se vocês acham que ele nunca vai ver a sua carteira de volta, disquem o mesmo número, mas com final 2.
Se vocês acham que a carteira vai aparecer em uma favela no Rio de Janeiro e os sequestradores vão pedir resgate, disque o mesmo número, mas com terminação 3.
Se vocês acham que o meu discurso para o chato ficou bom, disquem 0800 VGOOD.
Se vocês acham que ficou ruim, disquem 0800 SUCKS.
Se vocês acham que o chato tem um gato de estimação, disquem 0800 1GATO.
Se vocês acham que ele tem dois gatos, disquem 0800 2GATO.
Se vocês me acham um gato, disquem 0800 GATAO [foi irresistível fazer isso].
Se vocês acham que ele tem um cachorro, disquem 0800 01CAO.
Se vocês acham que é mais de um cachorro, disquem 0800 M1CAO.
Se vocês acham que é outro animal, disquem 0800 OUTRO e deem a sua opinião.
Se vocês acham que eu deveria calar a boca, disquem 0800 FUKIU.
Até mais tarde, pessoal!).
Nota do autor, setembro de 2021: o enredo da crônica, em si, não é dos melhores, embora traga bastantes acontecimentos saudosos da minha infância. A festa de Pessach na casa da minha tia Miriam foi uma tradição que perdurou por muitos e muitos anos. Nós tínhamos também a festa de Rosh Hashaná (ano novo), que tinha uma comida um pouco mais gostosa (pelo menos, podiam usar massa, não era tudo feito de Matzá). Então, era comum eu sempre jantar em casa antes de ir (minha tia que não leia isso). Curiosamente, a minha esposa (que também chama Mirian) sempre gostou das comidas, ao contrário de mim…
Lulo faleceu agora, em agosto de 2021, por um tumor de pulmão. Ele fumava muito, muito mesmo.
De qualquer forma, sobre a crônica: acredito que valha, e muito, pela sua metalinguagem. A falta de inspiração é algo que os escritores têm periodicamente, mas eu era um cara altamente produtivo, então, não sei por que estava tão estressado. Mal saberia eu que teria hiatos enormes de produtividade, relacionados ao excesso de carga de trabalho (na faculdade, na residência, na vida…). A inspiração, porém, quando aparece, é exatamente como esta descrição que eu fiz, e não tem nada como as engrenagens se movendo e criando uma história. A vontade que você tem é de escrever todas as ideias e, infelizmente, quando eu não faço isso, achando que vou lembrar depois, eu entro pelos canos. Atualmente, eu tento escrever no celular (a evolução da tecnologia ajudou muito) ou gravar a ideia.
¹ (Nota de 2021) Prática de Atenção à Saúde, curiosamente a matéria que eu atualmente leciono na PUC Sorocaba.
² (Nota de 2021) Na época, não existia Google Drive. Pois é. Enviar por e-mail era o top da tecnologia.
³ (Nota de 2021) Suzane Richthofen. Pois é, fazia pouco tempo que ela fora presa. Eita, crônica velha!
⁴ (Nota de 2021) Expressão em alemão para “cheio de pequenices”, daqueles que se incomodam com os detalhezinhos.
⁵ (Nota de 2021) Esta pergunta foi do Arthur. Lembram dele? Apareceu na crônica de Carnaval, Cinema e Chatos. Não sei qual seria o bichinho de estimação do chato até hoje, mas, se fosse chutar, talvez fosse uma iguana ou uma tartaruga. Algo que pudesse sobreviver apesar dele.
⁶ (Nota de 2021) Ocasionalmente minhas crônicas daquela época contam com algum comentário que, atualmente, é considerado homofóbico. Na verdade, eles sempre foram,antes ou agora, mas, como eu sempre gosto de frisar, na época, as pessoas se importavam menos com isso. Ainda bem, isso vem mudando, porque comentários como este realmente são absurdos. De qualquer forma, optei por manter este comentário, porque representava muito bem a época e a pessoa – o Lulo sempre me chamou assim, politicamente correto ou não, e nada o faria mudar.

O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais